Recusa familiar para doação de órgãos atinge 47% no Brasil
A taxa de recusa familiar para doação de órgãos no Brasil aumentou 18% em três anos e é a maior dos últimos dez anos, aponta o relatório anual da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). O artigo é referente a 2022 e foi divulgado nesta segunda-feira (6) pela instituição.
De acordo com o levantamento, o número de famílias que não autorizaram a doação de órgãos dos seus familiares que estavam em morte cerebral era de 40% em 2019 (antes da pandemia). Ano passado, atingiu 47%.
Recusa familiar para a doação de órgãos
“O Brasil está com uma taxa de negativa muito alta. Essa é uma questão que está relacionada com a conscientização e a educação da população sobre transplantes de órgãos. Quando a população conhece e entende o processo, a importância dos transplantes e como essa doação pode salvar vidas, nós conseguimos reduzir essa taxa de recusa”, disse Luciana Haddad, vice-presidente da ABTO.
Ela lembrou, ainda, que boa parte da taxa de recusa para a doação de órgãos ocorre por motivos religiosos. “Mas o processo passa pela informação e educação da sociedade”, frisou.
Além disso, outro possível problema apontado como entrave seria a falta de habilidade das equipes do hospital durante a abordagem da família. “As equipes que fazem essa entrevista passam por um treinamento sério feito pelas centrais estaduais e pela coordenação nacional de transplantes. Se ocorrem problemas pontuais, eles devem ser relatados pelo familiar para que sejam corrigidos. A gente jamais espera que haja um tratamento rude nesse momento de tanta dor e tanto sofrimento para as famílias”, disse Haddad.
José Eduardo Afonso Junior, coordenador médico do Programa de Transplantes de Órgãos do Hospital Israelita Albert Einstein, explica que a entrevista familiar em busca de potenciais doadores tem técnica, e somente pessoas especializadas em comunicação de más notícias podem realizá-la.
“Essa abordagem jamais deve ser feita antes do diagnóstico de morte encefálica. A maior parte da recusa das famílias está relacionada com a falta de confiança no sistema de saúde e também na demora em liberar o corpo, já que as equipes de captação do órgão vêm de outras cidades ou até outros estados, e essa liberação pode demorar de 48 horas até três dias para acontecer”, pontuou Afonso Junior.
Leia também: Reparação ligamentar: entenda a cirurgia de Neymar
Taxas entre os estados
Outro dado preocupante apontado pelo relatório anual da ABTO é que o número de doadores de órgãos também continua abaixo dos índices registrados antes da pandemia. Apesar de a notificação de potenciais doadores estar em crescimento (tivemos 61,9 doadores potenciais por milhão de pessoas no ano passado), a taxa de efetivação da doação continua muito baixa (26,9%), 20% menor do que a registrada em 2019, que foi de 33%.
De acordo com o relatório, apenas o Distrito Federal e mais quatro estados (Paraná, Santa Catarina, Rondônia e Sergipe) ultrapassaram os 90 potenciais doadores por milhão (pmp), sendo que apenas Santa Catarina conseguiu efetivar mais de 40% dos potenciais doadores. Por outro lado, no Mato Grosso, no Maranhão, em Alagoas e no Pará, essa taxa foi inferior a 30 pmp. O relatório aponta também que a taxa de doadores efetivos (16,5 pmp) foi 10% menor do que a taxa de 2019 (18,1 pmp).
“Paraná e Santa Catarina são considerados exemplos porque têm coordenações estaduais que fizeram a diferença na política de doação de órgãos. Em Rondônia, o Einstein fez o treinamento e a capacitação de equipes para diagnóstico correto da morte encefálica e abordagem familiar por meio do programa Proadi-SUS [Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde] há cerca de quatro anos”, afirmou Afonso Junior.
Motivos da recusa para a doação de órgãos
A não efetivação da potencial doação pode ocorrer pela negativa familiar e também por contraindicação médica para o transplante, que era de 15% em 2019, chegou a 23% no auge da pandemia em 2021 e terminou o ano com 17%, 13% acima da obtida em 2019. Outras razões incluem parada cardíaca ou morte encefálica não confirmada.
Segundo Haddad, da ABTO, a contraindicação médica envolve desde um doador com alguma infecção que poderia ser transmitida para o receptor (o que é uma contraindicação absoluta); alguns tipos de câncer que podem gerar riscos; e condição clínica do doador muito ruim, que inviabilizaria o uso do órgão. “Infelizmente, no Brasil temos um grande número de possíveis doadores que acabam entrando nessa lista de contraindicações.”
Para Afonso Junior, outra questão que impacta bastante é o Brasil conseguir fazer o diagnóstico correto de morte encefálica para que haja a notificação (que é compulsória) e a identificação dos potenciais doadores. “Infelizmente o Brasil sofre com a incapacidade de alguns Estados de fazer o diagnóstico de morte encefálica corretamente. E isso ocorre por vários motivos, entre eles pela falta de médicos especialistas autorizados a fazer esse diagnóstico [neurologista, neurocirurgião ou intensivista] e pela ausência de exames que possam permitir ao médico chegar ao diagnóstico [eletroencefalograma, doppler transcraniano e angiografia cerebral]”, disse.
Números insatisfatórios
De acordo com Haddad, o Brasil ainda está muito longe de alcançar uma taxa satisfatória de potenciais doadores, o que é necessário para aumentar o número de transplantes. “Queremos aumentar progressivamente essa taxa, mas ela ainda está muito baixa. Não estamos nem comparando com as melhores taxas do mundo [nos Estados Unidos, por exemplo, a taxa de potenciais doadores chega a 70%, e a de doadores efetivos, 41,6%]. Se conseguíssemos chegar em 50% na taxa de efetivação de doação [hoje estamos em 26,9%], a gente conseguiria dobrar o número de transplantes realizados no Brasil. Isso já seria muito importante, e é o que a ABTO vem buscando junto com os órgãos governamentais.”
Segundo Afonso Junior, o Sistema Nacional de Transplantes do Brasil é muito bem desenhado e tem processos muito claros e objetivos. Contudo, ainda esbarra nas dificuldades estaduais – já que a implementação dos transplantes depende do gestor estadual. Por isso, ele acha difícil dobrar o número de doadores efetivos em menos de dez anos.
“A política de transplantes depende de pessoas interessadas. O governo federal até tenta mitigar as dificuldades estaduais por meio do Proadi-SUS, que inclui outros hospitais de referência além do Einstein. Mas é bem difícil”, disse.
Leia também: Granulomatose de Wegener: o que é a doença de José Mayer?
Os principais transplantes
De acordo com o relatório, a taxa de transplante renal aumentou 10% em relação a 2021. Mas ainda está 17,5% abaixo da obtida antes da pandemia, em 2019. No caso do transplante hepático, a taxa de 2022 foi 2,8% superior à de 2021 e 8,3% inferior à de 2019. Já a taxa de transplantes cardíacos manteve-se praticamente estável em relação ao ano anterior.
Por outro lado, a taxa de transplante de pulmão retornou à de 2019, sendo o primeiro órgão sólido a obter tal feito. A taxa de transplante de pâncreas foi 24,4% menor que a do período pré-pandemia e também foi menor que a dos anos de pandemia. O transplante de córneas duplicou sua taxa em relação ao primeiro ano da pandemia, mas ainda está 8% abaixo da taxa de 2019.
O relatório mostra que o Brasil é o terceiro país do mundo em números absolutos de transplantes hepáticos, ficando atrás apenas de Estados Unidos e China. Ocupa a quarta posição em relação aos transplantes de rim. Somente em 2022, 33.823 pacientes entraram na fila de espera por um transplante (incluindo adultos e crianças) e 2.765 morreram enquanto aguardavam um órgão.
Fonte: Agência Einstein.