Doação de órgãos no Brasil: como é a vida de quem recebe?

Saúde
27 de Setembro, 2022
Doação de órgãos no Brasil: como é a vida de quem recebe?

Duas semanas antes, Malu já havia feito as malas. Ela separou todas as roupas, acessórios e itens pessoais que sabia que precisaria e, assim, deixou claro para o universo que estava pronta. No dia 14 de novembro de 2021, o telefone tocou. Era um domingo, sete horas da manhã, quando ela escutou sua mãe chorando e gritando. Do outro lado da linha, o médico avisava que o grande dia havia chegado. Depois de três anos e três meses fazendo sessões semanais de hemodiálise, Malu recebeu um novo rim — e uma nova chance de viver sem depender de uma máquina. Quase 60 mil pessoas esperam na lista de doação de órgãos no Brasil e aguardam uma ligação como a de Malu. Em contrapartida, a cada milhão de brasileiros, menos de 20 são doadores.

A médica e vice-presidente da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos), Luciana Haddad, explica que um dos maiores desafios do transplante no país se deve à alta taxa de recusa das famílias. “No Brasil, o transplante só acontece com o consentimento familiar, então é necessário que a família autorize a doação de órgãos depois da comprovação da morte encefálica”, esclarece.

Ela conta que a oferta não supre a demanda e, por isso, através de campanhas como o Setembro Verde, que incentiva a doação de órgãos, e, mais especificamente, o 27 de setembro, data criada com o intuito de conscientizar as pessoas sobre a importância de ser um doador, há a tentativa de engajar mais indivíduos e enfatizar o impacto do ato de doar órgãos na vida de quem precisa.

Antes do sim: o diagnóstico

doação de órgãos

No caso de Malu, tudo começou com um diagnóstico de hipertensão arterial ainda no ano de 2012. Ela havia entrado no curso de enfermagem da USP (Universidade de São Paulo) e começou a sentir alguns sintomas da doença. Os médicos investigaram para saber se a condição havia sido desenvolvida por conta de problemas em algum outro órgão, ou se poderia se tratar de uma causa primária, quando não há motivo aparente. Até então, tudo estava normal.

“Aí, eu fiz o tratamento medicamentoso e o acompanhamento. Eu me formei e fui para o Rio de Janeiro em 2018 trabalhar e fazer a residência na Fiocruz. Lá, cinco meses depois, eu descobri a insuficiência renal crônica”, lembra.

Durante um exame de rotina, ela viu que os níveis de creatinina estavam altos e entendeu que as sessões de hemodiálise, procedimento no qual uma máquina exerce o papel dos rins de limpar e filtrar o sangue, seriam inevitáveis.

“Os rins já estavam perdendo a função e, então, eu acabei voltando para casa, né? Tranquei o curso, o trabalho e comecei a fazer hemodiálise”, conta.

Depender de uma máquina para viver

Segundo Malu, a pior parte do diagnóstico de insuficiência renal é ter que depender da máquina de hemodiálise para viver. “É um aprisionamento, uma dependência que é muito difícil de lidar”, resume.

Restrições alimentares, restrições hídricas e até restrições de deslocamento passaram a fazer parte do dia a dia da enfermeira. Natural de Santa Rosa de Viterbo, ela viajava três vezes por semana até Ribeirão Preto, cidade mais próxima com a infraestrutura adequada para atendê-la, para realizar a hemodiálise. Cada sessão durava, em média, quatro horas.

“Eu sempre tentei lidar da melhor maneira possível com tudo que eu vivi, mas é difícil, você não pode fazer planos sem pensar nisso. Porque eu dependia da máquina para viver, né?”, diz.

Além disso, o processo desde a descoberta do diagnóstico até a chegada do novo rim foi longo e contou com outros momentos desafiadores. No início de 2019, Malu ia entrar para a lista de transplante, mas os médicos começaram a suspeitar de um câncer renal. Nesse momento, ela teve os dois rins retirados. 

“Eu tive que tirar, porque estava com o que pareciam nódulos, então passei por esse processo, mas não eram malignos. Depois de tudo isso, eu entrei para a lista de espera mesmo”.

Leia mais: Transplante de rim: órgão doado faz falta? Quem pode doar? Entenda

Ter com quem contar

Além dos desafios e das limitações físicas, a saúde mental e emocional também exige uma atenção especial. Para Malu, o apoio da família, dos amigos e o acompanhamento psicológico foram essenciais no enfrentamento dessas mudanças. 

Além disso, ela encontrou nas redes sociais uma forma de externalizar o que estava passando e o que sentia. O Diário de Renal, perfil da Malu no Instagram, nasceu há quatro anos, no dia 27 de setembro de 2018, e guarda memórias do que pareciam infinitas sessões de hemodiálise e do dia que, finalmente, recebeu o ‘sim’. “Saber que você não é a única que está passando por isso é uma forma de sentir mais consolo, né? É por isso que eu faço isso hoje nas redes sociais, porque me ajudou e eu sei que ajuda as pessoas”, afirma.

Doação de órgãos no Brasil: a fila de transplantes

Existem diversos processos burocráticos no que diz respeito à doação de órgãos no Brasil. “O transplante é todo controlado por lei, então tem uma legislação que engloba desde a captação de órgãos e a identificação do doador, até a regulação da lista e a gestão. Tudo isso é feito pelo Sistema Nacional de Transplantes, que é ligado ao Ministério da Saúde e aos estados pelas Secretarias Estaduais de Saúde”, explica Luciana.

Assim, primeiramente, um potencial doador precisa ser identificado. Depois, acontece a notificação para as centrais estaduais. Então, a equipe de procura faz a comprovação da morte encefálica e entra em contato com a família para, por fim, efetivar a doação.

“A central estadual vai fazer a distribuição dos órgãos desse doador para as diversas listas das diferentes equipes. Os pacientes da lista têm uma fila, e aí são transplantados pelas equipes que o acompanham”, diz a médica.

Em casos de transplantes de rins ou de parte do fígado, é possível que a doação aconteça em vida por meio de algum familiar compatível. Malu tinha a expectativa de que sua mãe conseguiria ser a sua doadora. 

“Eu fiz exames com ela, e era compatível. Estava tudo certo, eu cheguei em São Paulo no hospital, a médica chegou a marcar a cirurgia e desmarcar, então foi um processo muito difícil de lidar. Eu estava com muita esperança. Não deu certo, e não pela saúde da minha mãe, nem pela minha. Foram outros motivos que vieram com a pandemia e que atrapalharam todo esse processo”, conta.

Apesar das frustrações e da ansiedade, estar na lista de espera, de acordo com a Malu, é a esperança de quem faz hemodiálise. “Você acreditar que, em algum momento, vão te chamar para fazer um transplante e você não vai precisar mais da máquina, é a melhor opção”.

O dia do sim

Até o último dia, Malu ainda tinha esperanças de receber o rim da mãe, mas a ligação veio antes — com a chamada que marcou um dia que a enfermeira não tem como esquecer. Ao ouvir a sua mãe eufórica no telefone, entendeu do que se tratava. “Eu peguei o telefone, conversei com meu médico, que é o meu médico até hoje, e aí ele falou ‘olha, surgiu um órgão compatível’”, relata.

doação

Apesar da felicidade, Malu manteve a calma e quis saber das questões práticas antes de comemorar. Então, ela perguntou quais eram as condições do órgão e se ele recomendava a realização do transplante — afinal, ela não queria se frustrar mais uma vez. Ao receber a aprovação do médico, a ficha começou a cair.

“Eu fui bem calma, tanto que eu fui dirigindo para o hospital. Minha mãe estava muito desesperada, então alguém precisava manter a calma”, brinca.

Ela ainda lembra que não deixou a mãe avisar os familiares ou amigos. Queria ter a certeza de que tudo daria certo antes de anunciar. “Eu falei assim ‘a hora que eu tiver entrando, vocês avisam para não criar expectativa’. Aí eu entrei, né? Assinamos o termo dos riscos de qualquer cirurgia e eu falei ‘não, agora é meu, agora deu certo’”, recorda.

Geralmente, o procedimento acontece no próprio dia em que a pessoa é convocada ou, no máximo, 48 horas depois. O tempo varia conforme a isquemia fria do órgão, isto é, o período que ele sobrevive fora do corpo. Malu fez os testes necessários e passou por uma última sessão de hemodiálise antes de começar a cirurgia, que duraria nove horas.

Depois do sim

Após receber o transplante, existe um período de adaptação para entender se o corpo vai aceitar ou rejeitar o órgão. Malu demorou nove dias para fazer xixi. Os médicos desconfiaram de uma possível rejeição, mas a hipótese foi descartada. Lidar com essa incerteza é um dos grandes desafios do pós-cirúrgico.

malu

“Nesse começo, dá muito medo de dar alguma coisa errada, de rejeitar ou de você pegar alguma coisa, sabe? Eu senti tanto isso que eu criei um grupo de apoio psicológico para transplantados e a gente faz encontros com psicólogas mensais. Ele chama bem TX, é um projeto meu. Mas eu tenho psicólogos que são voluntários lá de Goiânia e que se disponibilizaram para fazer parte desse grupo justamente para ajudar no processo”, explica.

Os três primeiros meses depois do transplante são os mais delicados. Nessa fase, é preciso tomar bastante cuidado com infecções, por exemplo. Com o tempo, a angústia e o medo vão dando lugar para o alívio de saber que deu certo. As visitas ao hospital, por exemplo, ficam menos frequentes, mas elas continuam sendo necessárias. 

“A gente vai ter que frequentar para sempre o hospital. Tem que fazer para acompanhar o órgão, né? E os imunossupressores também, a gente tem que tomar enquanto houver órgão”, esclarece.

A importância da conscientização da doação de órgãos no Brasil

Entre os maiores desafios da doação de órgãos no Brasil, Luciana cita a dificuldade da aceitação das famílias, falhas no sistema de identificação de possíveis doadores e a necessidade de cuidados com o doador até o momento da doação.

No ano passado, o Ibrafig (Instituto Brasileiro do Fígado) fez uma pesquisa, e descobriu que 67% dos entrevistados afirmaram querer doar órgãos, mas 52% nunca haviam informado isso aos familiares. Entretanto, comunicar a vontade de ser um doador para a família é crucial para que o transplante, de fato, aconteça. 

A taxa de recusa das famílias no primeiro semestre de 2022, de acordo com a ABTO, se manteve alta — em 44%. Além disso, a pandemia do coronavírus trouxe uma baixa significativa de doações e, de janeiro a maio deste ano, elas caíram em 8,6%.

Mesmo tendo um contato próximo com a área da saúde, Malu nunca esteve à par de questões relacionadas à doação de órgãos. Agora, sendo uma mulher transplantada renal há 10 meses, ela luta para ajudar outras pessoas e para divulgar a importância de ser um doador. “O trabalho que eu faço é para que as pessoas olhem para mim e para outras pessoas que receberam um transplante e vejam como isso mudou e transformou a vida delas. Para que elas escolham doar órgãos, porque isso realmente transforma muito a vida não só de quem recebe, mas de quem os ama”, diz.

Uma nova Malu

Além da vontade de ajudar outras pessoas que, assim como ela, passam por sessões de hemodiálise ou aguardam a chegada de um órgão compatível, Malu conta que passou a dar valor para outras coisas depois de todo o processo.

“A maioria das escolhas e das minhas prioridades mudaram. Primeiro, eu priorizo a minha saúde. Eu tenho tempo para cuidar do meu corpo, da minha alimentação, da minha saúde mental. Isso é uma prioridade inegociável para mim agora. Antes não, eu era sempre aquela que queria ajudar as pessoas, mas me colocava um pouco em segundo plano, né? Mas depois de ter vivido tudo isso, eu aprendi realmente a me colocar nesse lugar de cuidado”, confessa.

A doação de órgãos no Brasil se tornou a grande causa e o propósito de vida da Malu. Atualmente, ela está na tentativa de entrar em um mestrado na área de transplantes, principalmente para ajudar aqueles que não têm a oportunidade de receber suporte. Apesar de tudo e também por causa de tudo, Malu sente orgulho de quem é hoje. “Eu sou uma nova pessoa e, com certeza, a melhor versão que eu já tive”, finaliza.

Saiba mais informações sobre a doação de órgãos no Brasil

Fonte: Maria Luisa, enfermeira, transplantada renal e criadora do perfil Diário de Renal e Luciana Haddad, médica e vice-presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos

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