Marcas invisíveis do câncer de mama: um novo olhar sobre si

Bem-estar Equilíbrio Saúde
28 de Outubro, 2022
Marcas invisíveis do câncer de mama: um novo olhar sobre si

Durante cinco minutos, Roberta se permitiu chorar. Sentiu-se injustiçada, questionou a própria fé e reconheceu que estava com raiva do mundo. “Por que comigo?”. Todos os dias, ela fazia o autoexame das mamas durante o banho. Depois de um ano, percebeu algo diferente no seio esquerdo. Quando recebeu o diagnóstico de câncer de mama, estava com 27 anos, recém-casada e tinha como sua maior prioridade o trabalho de fisioterapeuta. Hoje, aos 33, ela olha para trás e não se reconhece. Entre as marcas invisíveis do câncer de mama, algumas são de dores impossíveis de caírem no esquecimento, outras de transformações que fizeram-na reencontrar o seu propósito.

Estima-se que, no Brasil, a cada ano, existam 66.280 novos casos de câncer de mama. A campanha do Outubro Rosa nasceu com o intuito de conscientizar as pessoas acerca da condição e da prevenção e, assim, reduzir a incidência e a mortalidade da doença. 

Mulheres acima dos 50 anos devem realizar a mamografia de rastreamento periodicamente, mas o autoexame pode começar mais cedo, como no caso de Roberta. Apesar de atuar na área da saúde, ela não tinha o costume de se cuidar. O trabalho consumia o seu tempo de tal maneira que ela nem percebia como havia deixado a saúde em segundo plano.

Os hábitos de Roberta mudaram por conta do câncer, mas foi um post no Facebook que fez com que ela ficasse em alerta. Uma colega da época de escola fez uma publicação dizendo estar com câncer de mama. “Eu fiquei chocada. Fazia anos que eu não sabia dela e, quando eu vi, estava com câncer. Eu liguei para minha irmã, contei a história e falei ‘Cara, como assim, né? 26 anos’. E, então, eu combinei com a minha irmã que a partir desse momento a gente ia se cuidar.”

O dia que mudaria tudo

Impressionada com a postagem da antiga amiga e preocupada com a própria saúde, Roberta passou a dividir a rotina entre trabalho, consultas com diversos especialistas e baterias de exames. Nesse tempo, começou a criar o hábito de apalpar as mamas diariamente. Quando percebeu que algo não estava normal, visitou um ginecologista.

No dia 24 de maio, ela descobriu a presença de um nódulo no seio esquerdo. O médico não apostava no câncer, mas acolheu a preocupação de Roberta e solicitou uma biópsia. Em 7 de julho, ela já estava com o resultado em mãos.

“Era câncer mesmo, já no grau três. Então, eu já estaria com metástase. Foi o limite do que é um diagnóstico precoce bem agressivo”, conta.

Há vida depois do diagnóstico

Todos os estigmas relacionados ao câncer foram sentidos por Roberta. Ela não entendia por que aquilo estava acontecendo com ela, justamente naquele momento de sua vida. Depois de ter se permitido chorar e sentir tudo o que precisava, começou a cuidar da parte prática do pós-diagnóstico. 

Marcou os exames necessários, avisou os familiares e amigos mais próximos e comunicou as pessoas do trabalho. “Workahólica”, como se autodenominava, acreditava que conseguiria — e, de certa forma, queria — continuar trabalhando normalmente, mas teve o aval de sua chefe para, pela primeira vez, cuidar da própria saúde.

A psicóloga Raphaella Pires, especialista em psico-oncologia, explica que o momento do diagnóstico e o desenrolar das emoções são muito individuais, mas geralmente, a sensação de proximidade com a morte é o fator que mais assusta.

“No momento do diagnóstico, as reações são mais relacionadas à ansiedade, ao medo e à preocupação porque naquele momento é tudo muito incerto. O medo da morte é muito presente. Então, é quando a pessoa vai ter mais concretizada essa questão da finitude”, explica.

Com Roberta, não foi diferente. Ela recorda ter questionado a forma com a qual vivia. Na época, além de colocar o trabalho antes de todas as áreas de sua vida, estava acima do peso, fumava e bebia com frequência.

“Eu fiquei com muito medo de morrer. Pensei ‘se eu morrer agora, com 27 anos, eu sou completamente realizada, mas eu não sou feliz’. Eu estava realizada no meu trabalho, mas assim, pessoalmente, tirando o casamento com meu marido (que é o amor da minha vida), eu não fiz nada.”

O início de um novo caminho

As sessões de quimioterapia começaram em julho de 2016 e acabaram no fim de dezembro. Ao todo, foram 16 sessões, quatro vermelhas — em que, geralmente, há efeitos colaterais mais fortes — e 12 brancas. 

Além do cansaço, da baixa imunidade e da fraqueza, Roberta começou a sentir muita dor óssea. “Foi o único momento do tratamento que eu falei para o meu marido: ‘Eu acho que meu corpo não aguenta chegar até o final’. Eu sentia muita dor”, recorda.

Foi nessa fase que a atividade física passou a fazer parte da sua rotina. Ela começou com caminhadas no parque e percebeu que a prática aliviava as dores. Com o consentimento da médica, começou, então, a fazer disso um hábito e, aos poucos, se desafiou a correr.

“Eu lembro que eu corri 2 quilômetros, meio andando, meio parando. Eu chorava porque eu me sentia viva assim, sabe? Mais viva do que quando eu não tinha descoberto o câncer”, conta.

Nesse momento, Roberta tentava tudo o que estava ao seu alcance para auxiliar no tratamento. Marcou nutricionista, mudou a alimentação e também começou a cuidar da saúde mental com acompanhamento de um psicólogo. “Eu reconheço os privilégios que tive no tratamento. Infelizmente, não é a maioria que consegue ter acesso a toda essa equipe”, destaca.

Cuidar do que é sagrado

Raphaella explica que, atualmente, existe um trabalho multidisciplinar mais efetivo no combate ao câncer e reforça a importância de cuidar da saúde mental durante todo o tratamento.

“A gente não faz nenhuma prescrição, a gente não faz exame clínico, mas a gente ajuda o paciente a atravessar esse processo com menos sofrimento, a gente ajuda a fazer com que o paciente consiga olhar para essas emoções de uma forma mais funcional”, esclarece.

Além disso, há também o papel do profissional em identificar uma possível depressão ou algum quadro que precise de um encaminhamento para um psiquiatra, por exemplo. A psicóloga reforça, sobretudo, que o câncer vai além da doença física. Ele impacta em questões emocionais que vão desde a ansiedade, o medo da morte e a tristeza, até as preocupações com alterações do corpo e com a própria autonomia e independência.

Marcas invisíveis do câncer de mama: os lutos simbólicos

“As pessoas não têm dimensão do que o paciente que recebe o diagnóstico de câncer de mama está vivenciando. É um processo de luto, não luto pela morte em si, mas luto pela perda simbólica. No momento do diagnóstico, ela vivencia o luto pela perda da condição de pessoa saudável, o luto pela rotina que ela não tem mais, pela convivência social. Com o tratamento, vêm os lutos relacionados a essas perdas que são mais concretas, que é a perda do seio ou a perda do cabelo, por exemplo.”

O cabelo

Um dos momentos mais difíceis para Roberta durante o processo de tratamento foi a queda do cabelo. “Eu criei a expectativa de que eu ia ser um caso raro e que meu cabelo não ia cair. Então, dentro de mim, eu tinha esperança”, conta.

Os fios começaram a cair na madrugada antes de sua viagem adaptada de lua de mel. A mala estava quase pronta, mas ainda havia espaço para a maquininha. Com o passar dos dias, os tufos iam caindo cada vez com mais frequência e em maiores quantidades. 

marcas invisíveis do câncer de mama

Assim como depois do momento em que recebeu o diagnóstico, Roberta se permitiu sentir. Durante um dia, ela pediu ao marido e aos amigos que estavam na viagem que a deixassem sofrer. Pelo menos durante aquele dia. Assim, na manhã seguinte, raspou o cabelo e, diferentemente do que imaginava, gostou do que viu no espelho. 

“Esse desapego da imagem foi um processo complexo, porque a princípio eu gostei de me ver careca. Não me adaptei muito bem à peruca, nem ao lenço. Peruca, as pessoas olham demais, e sentimento de pena para mim não dá. Por isso, eu comecei a abusar da maquiagem, do brinco e fui me encontrando”, diz.

Sobrancelha e cílios

A queda da sobrancelha e dos cílios, por outro lado, foi, de certa forma, inesperada para ela. “Uma coisa que as pessoas não falam muito é das sobrancelhas, dos cílios e das unhas. Coisas que são detalhes para quem não está passando por isso, mas que quando aquela paciente se olha e se vê sem cabelo, sem sobrancelha, ela fica sensível a tudo aquilo que é construído socialmente como a beleza da mulher”, reflete Raphaella.

 

Eu não consegui me olhar no espelho. Eu lembro que eu liguei para o meu marido e eu chorava.

Leia também: Outubro rosa: a autoestima das mulheres após o câncer

Autonomia

Em janeiro de 2017, Roberta passou pela mastectomia, retirada cirúrgica da mama para tratar o câncer. Para muitas mulheres, esse é outro momento bastante delicado no que diz respeito à autoimagem, mas a única preocupação da fisioterapeuta era sair viva da mesa de cirurgia.

Ela teve alguns problemas na cicatrização e passou por mais alguns procedimentos cirúrgicos. Esses impasses fizeram com que o tempo de recuperação se alargasse, e a ajuda de terceiros fosse ainda mais necessária. “Meu marido tinha que me ajudar a tomar banho e ir ao banheiro. Ele tinha que voltar do trabalho para me dar almoço, porque eu não tinha força no braço para colocar o talher na boca. Eu não conseguia fazer nada, não tinha mais liberdade”, lembra.

A psicóloga comenta que essa questão da perda de controle é um conceito bastante abalado por pacientes com câncer. Nesse momento, há a sensação de que não há controle sobre a própria vida, e surgem diversas limitações acerca de prazeres que não podem mais ser acessados, como comer determinado alimento, sair com amigos, etc. “Eu sempre estimulo o paciente a buscar, dentro da realidade na qual ele se encontra, ações que podem melhorar a própria autoestima e dar uma sensação maior de autonomia”, diz.

Um novo olhar sobre si

Depois do fim do tratamento, Roberta lembra de ouvir que deveria ser grata pela chance que ganhou e que, agora, tudo voltaria ao normal. “Eu odiava ouvir isso, porque na minha vida normal, eu fumava, bebia e estava acima do peso. Eu estava no pior momento da minha vida. Adoeci daquela forma. Então, eu não queria a vida normal, só que eu não sabia fazer outra coisa.” 

Ela diz que a vida do sobrevivente não é fácil. A incompreensão das pessoas acerca do seu processo, a pressão para ser grata e feliz, a “nuvenzinha” do câncer que a acompanha todos os dias. Não à toa, Raphaella afirma ser muito comum pacientes desenvolverem quadros de depressão depois de terminarem o tratamento.

“Chegam vários pacientes que sobrevivem ao câncer e questionam: ‘E agora, o que eu faço?’. É um processo de desajuste, em que o psicólogo busca auxiliar nessa readaptação. Afinal, é um novo contexto que não se trata nem da vida que se tinha antes, nem da vida durante o tratamento do câncer. É uma outra fase, que vai precisar de apoio.”

Somos a maior geração de sobreviventes de câncer, e a sociedade vai precisar aprender a lidar com a gente.

Marcas invisíveis do câncer de mama: o que fica

marcas invisíveis do câncer de mama

Seis anos depois de ter perdido o controle sobre tudo o que lhe era conhecido, Roberta se vê em um lugar completamente diferente. Ela, que não queria ter filhos, tem ao seu lado Helena, de um ano e um mês. “Conexão de outras vidas”, reconhece. Ela conseguiu amamentar parcialmente a filha — que, por coincidência ou destino, tem o seio esquerdo como o preferido. “As duas maiores transformações que eu tive na vida juntas e, talvez, se uma não tivesse acontecido, a outra também não teria”.

O Vai Por Mim, perfil nas redes sociais e portal voltado para o acolhimento ao paciente de câncer e ao familiar, e de educação em saúde para o setor corporativo, nasceu durante o tratamento. Por meio dele, Roberta trabalha com marketing de propósito e atua no empreendedorismo na causa do câncer. Além disso, ela compartilha a rotina de hábitos saudáveis que, agora, é inegociável. Hoje, depois de ter feito a transição de carreira, a prioridade de Roberta é cuidar da saúde, por meio da atividade física, yoga, alimentação e saúde mental.

“Uma das principais marcas invisíveis do câncer de mama foi a de entender o meu protagonismo dentro da minha história. A gente terceiriza muito a nossa felicidade, a nossa saúde e entrega a nossa vida e nossa cura na mão dos médicos, e eu entendi o meu papel dentro disso”, comenta.

A “nuvenzinha” do câncer

roberta perez

O medo de receber um novo diagnóstico de câncer é inevitável. A “nuvenzinha” do câncer fica, mas Roberta busca viver da melhor forma — com isso e apesar disso.

“Minha médica disse: ‘todo mundo tem a nuvenzinha do câncer, mas só vocês que tiveram a doença sabem que têm. Por isso, desejo que ela nunca cubra o sol e a luz da sua vida’. Então, hoje, esse é o meu maior desafio. Acho que a minha maior marca é não viver em função do câncer, eu trabalho com câncer, amo o que eu faço, mas eu não vivo ele. Depois de tudo o que eu passei, não é justo comigo”, finaliza.

 

 

Fonte: Roberta Perez, fisioterapeuta de formação e criadora do Vai por Mim; Raphaella Pires, psicóloga da terapia cognitiva comportamental, especialista em psico-oncologia

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