Cultura da magreza: as lutas de quem convive com um transtorno alimentar

Alimentação Bem-estar
15 de Agosto, 2022
Cultura da magreza: as lutas de quem convive com um transtorno alimentar

Era dia de festa na piscina. Catarina tinha 12 anos, mas, esquecida como era, não se lembrou de levar o biquíni. Ela experimentou os de algumas amigas, mas nenhum serviu em seu corpo —  que havia se desenvolvido mais cedo do que os das colegas. Enquanto observava as outras crianças brincarem na água, ela, do lado de fora, pensava: “Eu não posso estar na piscina, porque eu não tenho o corpo delas”. Nesse dia, Catarina chegou chorando em casa e disse ao pai que precisava emagrecer. Hoje, com 19 anos, ela se recupera de transtornos alimentares e, no caminho contrário ao da cultura da magreza, compartilha suas pequenas vitórias no perfil @catarinatranstornos.

O que Catarina viveu no início da adolescência não é exceção. Recentemente, um estudo da Universidade de Oxford descobriu que, em duas décadas, o número de crianças e adolescentes tentando emagrecer mesmo tendo um peso saudável triplicou.

De acordo com a psicóloga Amanda Menezes Gallo, especialista em transtornos alimentares, é bastante comum problemas com a autoimagem começarem a aparecer no início da adolescência. “Aprendemos desde muito cedo que precisamos ter um corpo de determinado jeito para pertencer. Isso é muito comum, inclusive, no contexto familiar”, explica.

Apesar de o gatilho ter acontecido a partir de uma comparação, Catarina também sofreu uma pressão para emagrecer dentro de casa. Ela conta que sua mãe tinha o costume de comentar sobre o seu peso e reforçar que ela deveria emagrecer. Além disso, a gaúcha menstruou cedo, antes de todas as colegas, e a mãe reiterava a necessidade de emagrecer, uma vez que, segundo ela, com a menstruação seria mais difícil de perder peso.

A cultura da magreza

A crença de que ser magro é sinônimo de saúde e beleza serve como combustível para a perpetuação da cultura da magreza. De acordo com a nutricionista especialista em comportamento alimentar e aprimorada em transtornos alimentares Julie Roitman, a busca por esse corpo padrão é incansável e, de certa forma, traiçoeira. “A pessoa está sempre ali, tentando tudo o que pode para alcançar aquele corpo ‘bonito’, porque pensa ou sente que, quando chegar lá, a vida vai ser melhor”, diz.

Catarina conseguiu emagrecer, mas não encontrou a felicidade que tanto almejava no processo. “Nessa época, não teve um dia em que eu me senti bonita. As pessoas relacionam muito beleza com magreza, mas eu me olhava no espelho e odiava o que eu estava vendo. Por mais que eu tivesse emagrecido, o meu problema era interno”, lembra.

Afinal, qual é o custo de atingir o corpo magro? E, mais, será que é possível, de fato, alcançá-lo? Amanda levanta uma questão importante acerca da cultura da magreza. “Esse padrão não considera a individualidade, o perfil de cada um. Então, uma pessoa que é baixa ou tem uma estrutura corporal mais larga, por exemplo, pode sofrer, se culpar e ter uma autoestima frágil por não ter a possibilidade de se reconhecer no dito padrão de beleza”, comenta.

Cultura da magreza: tentativa de se encaixar

Quando as dificuldades em lidar com a autoimagem se tornam insustentáveis, é comum que essas pessoas adotem estratégias prejudiciais a fim de chegar o mais perto possível daquele corpo e, consequentemente, daquela vida idealizada.

No final de 2020, a Organização Mundial da Saúde alertou que cerca de 10% dos adolescentes brasileiros sofriam distúrbios alimentares. Além disso, um estudo publicado no International Journal of Eating Disorders revelou um aumento de 48% nas internações relacionadas a transtornos alimentares durante a pandemia de Covid-19.

“Transtornos alimentares são transtornos psiquiátricos caracterizados por uma perturbação persistente no comportamento alimentar e na forma de se relacionar com o corpo”, explica Julie.

Compulsão alimentar, anorexia e bulimia são os transtornos mais comuns. Além disso, vale ressaltar que uma pessoa pode apresentar mais de um quadro. No caso da compulsão, há um comer exagerado, no qual o indivíduo não consegue parar mesmo já estando saciado. Muitas vezes, ele é seguido por uma forte sensação de culpa e vergonha.

A anorexia envolve uma distorção de imagem, isto é, a pessoa não acredita estar magra o suficiente. Geralmente, ela passa a se alimentar de forma bastante restritiva e extrapola na prática de exercícios físicos. Já a bulimia, conhecida, sobretudo, por episódios de vômito após a ingestão de comida, é uma forma de evitar o ganho de peso após um episódio de compulsão.

Como começa

A nutricionista especialista em comportamento alimentar explica que um dos fatores que influenciam o desenvolvimento de um quadro de distúrbio alimentar é a adoção de dietas restritivas.

“A pessoa começa a ficar empolgada com aquela perda de peso e, quando ela percebe, a alimentação está cada vez mais restrita, ela está se exercitando cada vez mais e, consequentemente, desrespeitando os próprios sinais do corpo”, comenta.

Catarina conta que sempre teve uma relação boa com a comida, mas depois que começou a se comparar com as amigas e ouvir reclamações recorrentes da mãe, passou a olhar para o seu corpo de forma diferente.

“Eu fiz tudo por conta própria, li tudo na internet. Eu cortei carboidrato, fiz uma dieta absurdamente restritiva e parei de comer arroz, feijão, alimentos que eu amava. Se tinha jantar de pizza com os meus amigos, eu também não comia nada”, diz.

No ano seguinte, a gaúcha entrou para uma equipe de dança. Ela lembra ter visto uma colega cair na sua frente depois de ter ficado três dias sem comer. Com a pressão da indústria da dança que, de certa forma, reforçava a cultura da magreza, Catarina decidiu deixar o ballet, mas os problemas com a autoimagem e a comida continuaram.

A dor de quem vive com um transtorno

Amanda reforça o sofrimento que pessoas com transtornos alimentares experienciam diariamente (e em todos os âmbitos da vida) ao se sentirem inseguras e fracassadas por não terem o corpo que elas acreditam que deveriam ter. “Não há nenhum aspecto da vida que fique preservado, onde a pessoa consiga circular de forma livre, desimpedida, leve, sem pensar o tempo inteiro em comer ou na inadequação do corpo”, destaca a profissional.

Julie ainda comenta que a vida daquele indivíduo passa a girar em torno desse diagnóstico de transtorno alimentar. Nesse momento, é comum que a pessoa se afaste, o que impacta toda a vida social, relacionamentos e amizades.

Com Catarina não foi diferente. Ela lembra que se isolou dos seus amigos e passou a criar uma relação cada vez mais conflituosa com a alimentação. “Briguei com todo mundo, eu não saía mais com ninguém, descontava todos os meus problemas na comida. Nesse momento, eu comecei a desenvolver um certo tipo de bulimia. Então, eu tomava laxante para tentar tirar aquilo de alguma forma”, lembra.

Além disso, por meio das redes sociais, ela passou a acompanhar perfis de pessoas que faziam dietas para emagrecer. Quando pensou ter achado a solução para seus problemas, ela acabou ainda mais impactada pela cultura da magreza e, com isso, a fixação por contar calorias e classificar os alimentos tornou-se parte de quem era.

Julie comenta os perigos de se envolver em uma dieta restritiva e resumir os alimentos a números e calorias. Além disso, tais pessoas costumam categorizar os alimentos em “bons” e “ruins”. De acordo com a nutricionista, essa prática pode influenciar no surgimento de um transtorno. “Ao fazer essa separação, os alimentos proibidos se tornam muito mais tentadores do que eram antes”, esclarece.

Quando se perde o controle

A partir da disfunção em relação à alimentação, as chances de episódios de exageros são grandes. Catarina lembra que começou a esconder doces e outros alimentos em seu quarto para que seus pais não vissem o que estava comendo. 

Em 2019, a sua mãe encontrou uma mochila com várias embalagens de comida. “Ela ficou muito brava e começou a me xingar”, conta. Nesse dia, Catarina explicou que precisava de ajuda. “Eu falei ‘mãe, eu tenho um problema, não é uma coisa que eu consigo controlar’.”

Leia também: Medo de engordar: o que ninguém fala depois do emagrecimento

A importância de um olhar cuidadoso

Perceber e admitir que existe um problema a ser tratado não é simples, e esse processo é muito individual. 

“Há pouca (ou nenhuma) informação sobre o quanto o sofrimento por conta da alimentação e do corpo não é para ser normal. Mas isso foi normalizado, essa ideia de que ninguém é feliz com o próprio corpo”, comenta Amanda.

Além disso, é importante receber um olhar cuidadoso de pessoas próximas. Isso porque, muitas vezes, o indivíduo que sofre com o transtorno não consegue, sozinho, enxergar o problema.

No caso de Catarina, não foram os amigos ou familiares que a fizeram pedir ajuda. Certo dia, ela saiu durante uma aula de física para chorar no banheiro da escola. Ao retornar para a sala, a sua professora a puxou para conversar. “Ela disse ‘eu queria saber se tu tá bem. Eu tô te vendo meio para baixo. Qualquer coisa, sabe que tu pode contar comigo’. Eu voltei para casa e eu pensei: ‘Acho que eu estou mal mesmo’.”

Amanda reforça que o papel dos amigos e familiares é oferecer apoio e acolhimento. “As pessoas se cobram muito por terem respostas e frases motivacionais. Sempre saber o que dizer para ajudar o outro. Mas, às vezes, o melhor modo de ajudar é simplesmente sendo uma fonte de escuta.”

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Cultura da magreza: quando o tiro sai pela culatra

Justamente pela beleza estar associada à magreza no senso-comum, é recorrente que pessoas com transtornos alimentares recebam elogios por estarem magras. “Muitas vezes, o elogio, mesmo com a intenção positiva, é recebido como um reforçador de uma doença”, destaca Amanda

“Na época do transtorno alimentar, esses elogios me faziam bem porque eu pensava ‘estou no caminho certo, né?’”, conta Catarina.

Fazendo as pazes com o espelho

Catarina faz questão de ressaltar que o processo de recuperação de um transtorno alimentar não é linear. Depois de pedir ajuda para a sua mãe, ela começou a ter acompanhamento psicológico. Entretanto, ela expõe que já teve recaídas ao longo desse tempo.

Amanda e Julie destacam a importância de um tratamento multidisciplinar. Afinal, o distúrbio alimentar pode ser a manifestação de outros problemas psíquicos. 

“A equipe vai ser composta, no mínimo, por um nutricionista, um psicólogo e um psiquiatra. O mais importante mesmo é que todos esses profissionais sejam especializados em transtornos alimentares, porque o manejo do tratamento de um transtorno alimentar é muito diferente de um manejo  de uma pessoa que quer emagrecer e que não tem um transtorno alimentar”, destaca a nutricionista.

Amanda também comenta a importância de procurar psicoterapia direcionada, além de outros profissionais especializados. Segundo ela, especialistas que não conhecem essa realidade tendem a olhar para o sofrimento do paciente como algo simples. “Aí, o tratamento tem o efeito adverso”, comenta.

Além disso, a psicóloga também explica que, em alguns casos, existe a possibilidade de fazer um acompanhamento com fisioterapeuta. A ideia é ajudar a melhorar a relação com o próprio corpo, sobretudo em transtornos que envolvem distorção de imagem. 

O papel das redes sociais na cultura da magreza

As redes sociais podem influenciar na comparação e, consequentemente, na repulsa pela própria imagem. Em 2018, um estudo da Body Image divulgou que a percepção das mulheres sobre si mesmas mudava depois que elas entravam em contato com imagens de pessoas que consideravam mais atraentes.

“É o reforço de tudo que a gente vê lá fora, de tudo que a gente vê na sociedade. Ao ver as fotos nas redes sociais,  a gente parte do pressuposto de que o que está ali postado por alguém de fato representa o que a vida dela é”, diz Amanda.

Quando o assunto é recuperação de transtornos, Catarina recomenda: “Bloqueia todo mundo que não está te fazendo bem”. Além disso, ela compartilha como foi importante no seu processo tentar comparar-se apenas com si mesma. 

“Se eu comparar a Catarina de agora com a Caterina de anos atrás, é muita evolução”, afirma.

Recomeçar

Fazer as pazes com o seu corpo e olhar para o alimento que te nutre diariamente por outro ângulo é um processo árduo e longo. Amanda explica que, apesar de não defender que existe uma cura, afinal, todos estão suscetíveis a terem recaídas, os transtornos são tratáveis.

Assim, viver em remissão e ter anos de estabilidade é uma realidade possível e alcançável. Além disso, a importância de olhar para si mesmo com carinho é crucial para uma vida genuinamente feliz. “Aonde você for, você vai com o corpo que você tem, com o cabelo que você tem, com o rosto que você tem”, reflete a psicóloga.

Hoje, Catarina é estudante de nutrição e conta que deseja, no futuro, ajudar pessoas com transtornos. Além disso, ela usa as redes sociais para compartilhar as suas vivências e servir como apoio para aqueles que convivem ou estão se recuperando de algum transtorno alimentar. 

Agora, ao lembrar da Catarina de 12 anos sentada na beira da piscina e de todas as batalhas internas que enfrentou até aqui, a estudante pondera: “A gente tem que entender que as coisas ruins fazem parte, mas elas também fazem a gente crescer. O processo não é linear, porque a gente vai passar por muita coisa, mas eu acredito que é preciso abraçar todos os momentos.”

Fonte: Catarina Aranovich, criadora do perfil @catarinatranstornos; Amanda Menezes Gallo, psicóloga (CRP 06/92979), especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental, Mestre em Avaliação Psicológica em Contexto de Saúde Mental, e Doutora em Distúrbios do Desenvolvimento; Julie Roitman, nutricionista, especialista em comportamento alimentar e aprimorada em transtornos alimentares pelo AMBULIM.

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