Saúde indígena: pesquisadores buscam entender doenças mais comuns

Saúde
06 de Fevereiro, 2023
Saúde indígena: pesquisadores buscam entender doenças mais comuns

O vale do Javari, no oeste do Amazonas, tornou-se tema do noticiário no mundo todo em junho de 2022 com a morte do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips. Os relatos sobre a situação dramática no local impressionaram a enfermeira Eliseth Ribeiro Leão, pesquisadora do Einstein, em parte porque ela conheceu de perto aquele cenário em circunstâncias muito diferentes. Eliseth já havia constatado problemas na saúde indígena que merecem atenção. 

Na década passada, ela e sua colega Elaine Barbosa de Moraes, na época orientanda de mestrado de Leão, tinham visitado a região para um estudo pioneiro sobre como diferentes grupos indígenas do Javari lidavam com dores no corpo ou de cabeça. “Passamos por todos os lugares ligados ao caso do Dom e do Bruno. Às vezes, a gente, conversando, até se pergunta ‘Nossa, será que a gente esteve lá mesmo?’. Porque essa é a sensação que a gente tem: parece outro lugar, outro país”, conta ela.

Esse abismo entre o resto do Brasil e grande parte das populações indígenas da Amazônia e de outros lugares se reflete também nas condições de saúde. O trabalho das pesquisadoras do Einstein, que incluiu ainda visitas a comunidades de povos originários do Acre, mostrou que a prevalência de dores lombares é quase três vezes maior entre os indígenas amazônicos do que entre a população brasileira como um todo, enquanto a de dor de cabeça é quase o dobro. Continue lendo e entenda. 

Veja também: Aquecimento global contribui com o número de doenças renais

Ameaças históricas na saúde indígena

Levantamentos recentes indicam que um quadro semelhante se aplica não apenas à dor como também a outros indicadores de saúde, espelhando, assim, problemas que afetam grupos indígenas de maneira generalizada mundo afora.

Ricardo Ventura Santos, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), lembra que um estudo publicado na revista The Lancet em 2016, sob coordenação de Ian Anderson, da Universidade de Melbourne, na Austrália, traçou um panorama amplo do problema em nível global. “É um estudo do qual participamos também, que faz uma comparação entre os indicadores de saúde dos povos indígenas e o que eles chamam de benchmark population, que são as populações nacionais não indígenas de cada lugar”, explica.

No trabalho, que levou em conta informações sobre 28 povos originários de 23 países diferentes, Anderson e seus colaboradores verificaram diferenças sistemáticas. Por exemplo, os grupos indígenas apareciam em posições desfavoráveis quando comparados a pessoas não indígenas. “Penso que esse seja o trabalho mais importante e abrangente dos últimos dez anos sobre o tema”, diz o pesquisador da Fiocruz.

Marcas do colonialismo

Os fatores que explicam essa disparidade, no que diz respeito aos problemas de saúde pública das comunidades indígenas brasileiras, são complexos e variados. No entanto, todos estão ligados, em alguma medida, ao histórico de colonialismo e exclusão social que afetou esses povos desde a chegada dos europeus.

Para começar, a perda sistemática de territórios tradicionais para madeireiros e fazendeiros e a contaminação de rios pelo garimpo tiveram grande impacto. Assim, esses fatores colocam em risco a segurança alimentar e, portanto, também a saúde dessas comunidades. 

Além disso, tal como aconteceu com todos os demais nativos das Américas, os indígenas brasileiros, de início, não tinham nenhum tipo de imunidade contra doenças infecciosas do Velho Mundo, derivadas principalmente de zoonoses de animais domésticos que nunca tinham sido criados do lado de cá do Atlântico.

Resultados

Isso desencadeou uma elevada proporção de mortes por essas doenças desde as primeiras décadas de contato com os portugueses. Estimativas feitas por arqueólogos indicam que a população amazônica anterior à invasão europeia pode ter chegado a 10 milhões de habitantes. Ou seja, a maioria deve ter perecido por causa das doenças infecciosas nos primeiros séculos após 1500. 

Porém, esse processo ainda acontecia com alguma frequência nos anos 1960-1970. Nesse período, iniciativas de exploração econômica e ocupação geopolítica da Amazônia estimuladas pela ditadura militar produziram surtos letais. A presença contínua de comunidades isoladas na região ainda hoje faz com que essa possibilidade não tenha desaparecido totalmente.

Além disso, nas últimas décadas, mesmo etnias com um histórico relativamente curto de contato com a sociedade não indígena estão atravessando o que pode ser classificado como uma transição alimentar. 

Transformações econômicas no entorno das terras indígenas, incluindo a maior facilidade de transporte e comunicação e a integração de membros desses grupos ao mercado de trabalho e a programas assistenciais, podem estimular a incorporação de produtos industrializados.

Isso tende a aumentar o consumo de alimentos baratos, ricos em carboidratos e de baixo teor nutricional (macarrão, refrigerantes etc.). Dessa forma, esses alimentos têm levado a uma maior frequência de doenças cardiovasculares, obesidade e diabetes.

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Pesquisa genética

Nas últimas décadas, alguns estudos têm buscado investigar se a vulnerabilidade das populações indígenas a esses problemas está ligada a um componente genético. Assim, essas pesquisas levaram em conta a história evolutiva separada de seus ancestrais nas Américas durante os últimos 15 mil anos. Por enquanto, as pistas são poucas. “É importante salientar que são populações muito negligenciadas e que ainda temos poucas respostas sobre genética e saúde indígena”, pondera Tábita Hünemeier, pesquisadora da USP.

Principais problemas da saúde indígena

De acordo com ela, no caso das doenças causadas pelo consumo de alimentos industrializados, há alguns estudos apontando a presença de variantes genéticas. Entre elas está uma versão do gene ABCA1, ligado ao metabolismo do colesterol, objeto de um estudo de 2011 do qual Hünemeier é coautora. “Ele é o único que mostra uma variante exclusiva de nativos das Américas que leva a tais fenótipos, mas existem outros que mostram uma frequência mais alta de variantes que favorecem tais doenças em indígenas”, explica. 

Maria Cátira Bortolini, geneticista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), diz que seu grupo está buscando envolver alunos indígenas nos projetos. “Uma estudante Kaingang do curso de odontologia deve trabalhar conosco num projeto sobre metagenômica oral [ou seja, os genomas das populações de organismos da boca]”, conta. “Vejo isso com grande entusiasmo.”

Dessa forma, em um levantamento publicado pela Fiocruz na Oxford Research Encyclopedias of Global Public Health, fica claro o impacto desses determinantes. Além disso, o estudo aponta que houve melhoras significativas na saúde pública indígena, apesar dos grandes problemas.

Povo indígena Suruí-Paiter

Um caso que ajuda a ilustrar isso é o dos Suruí-Paiter, de Rondônia, acompanhados pelos pesquisadores da Fiocruz desde os anos 1980. Dados de 1987 mostravam que quase metade das crianças Suruí com até 9 anos de idade apresentava baixa altura. Esse é um indicador ligado a uma série de outras variáveis do desenvolvimento infantil.

Em 2005, porém, a proporção de meninos e meninas da etnia nessa categoria caiu para um quarto do total. Enquanto isso, o sobrepeso infantil começou a ser detectado nessa população (em 3,9% das crianças). “Esses achados foram importantes para motivar a formulação de uma política nutricional para os povos indígenas do Brasil. Além disso, mostram que as crianças indígenas não são ‘naturalmente’ de baixa estatura, como muitos ainda acreditam”, escrevem os autores. Eles destacam ainda avanços na vacinação e na diminuição da mortalidade infantil, em parte graças à criação, em 1999, do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). 

Saúde indígena: dores no corpo

No caso do levantamento sobre dor feito pelas pesquisadoras do Einstein, o impacto da assistência médica se mistura com o de estratégias tradicionais para aliviar a dor. Entre os 90 participantes do estudo, pertencentes às etnias Matis, Marubo, Kanamary, Ashaninka, e Huni Kuin, tanto os medicamentos usados por não indígenas quanto a medicina tradicional de cada cultura eram utilizados por cerca de 70% das pessoas. “Vemos um uso frequente de preparados tradicionais que têm uso tópico”, conta Eliseth Leão.

Para a pesquisadora, o esforço físico constante ditado pelo estilo de vida nas comunidades indígenas ajuda a explicar a alta prevalência de dores no corpo, bem superior à média brasileira.

“Eu me lembro de um senhor já idoso, agachado e cavando a terra com as mãos mesmo, enchendo uma bacia de alumínio com a terra, jogando-a em outro lugar e voltando para cavar mais”, diz ela. 

Por fim, segundo Leão, o plano é realizar ainda uma terceira expedição para avaliar a saúde indígena, ampliando o leque das etnias estudadas. A verba para o projeto, aliás, vinda de um doador do Einstein, já está alocada para isso. Porém, a pandemia de Covid-19 atrapalhou os planos da equipe. A doença afetou fortemente as comunidades indígenas brasileiras, que precisaram se mobilizar juridicamente para que fossem incluídas nos grupos prioritários para vacinação. 

 

Fonte: Agência Einstein. 

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