Autocuidados para doença celíaca libertam – e vão além do prato
Descobrir uma doença crônica parece aprisionador. O que se enxerga depois do ‘positivo’ é uma vida de restrições. Mas o ressignificar liberta. As mudanças, forçadas e muitas vezes inconvenientes, te obrigam a encontrar novas formas de se relacionar com o mundo. “Minha vida é outra”, admite Beatriz Dinis, que descobriu a doença celíaca pouco tempo depois da sua melhor amiga, Larissa Morais. Ao criarem, juntas, o perfil Belas Celíacas, elas encontraram uma forma de se adaptar à nova realidade, compartilhando seus autocuidados para doença celíaca e mostrando que é possível viver – muito – bem depois de um diagnóstico.
As duas têm uma à outra para enfrentar os altos e baixos da condição, mas a sensação de estar sozinho costuma ser uma máxima para quem acaba de descobrir o quadro. Isso porque, mesmo sendo uma das doenças autoimunes mais comuns, ela ainda é pouco difundida, compreendida e até tratada.
“Muita gente acha que é uma doença rara, mas na verdade ela só é pouco diagnosticada”, comenta Larissa.
Além disso, os poucos que recebem o diagnóstico precisam mudar drasticamente vários aspectos da vida, sobretudo a alimentação. “O celíaco tem que entender que ele não vai poder nunca ingerir nada, nem em pequenas porções, de glúten”, pontua a médica gastroenterologista Danielle Kiatkoski.
E mesmo que o próprio celíaco entenda isso, a família, os amigos e as pessoas ao redor, muitas vezes, não entendem.
Compreender e acolher para depois aceitar
De forma simplificada, a doença celíaca faz com que o organismo rejeite a proteína do glúten. Ele entende que esse componente é ruim para o corpo e, assim, ataca as vilosidades do intestino. “Todas as vezes que o celíaco entra em contato com glúten, ele ativa o seu sistema imune. Isso pode trazer como consequência outras doenças autoimunes ou complicações como tumores, linfomas e, em situações mais graves, anemia severa ou até mesmo o óbito”, esclarece a gastro.
Justamente por isso, o diagnóstico começa com um exame de sangue, mas passa por uma endoscopia e pela realização de uma biópsia do intestino.
Geralmente, os sintomas mais conhecidos são os gastrointestinais, por exemplo diarreia, dor abdominal, constipação e distensão – muitos sentidos, inclusive, pela Beatriz antes do diagnóstico. Mas a médica explica que a doença celíaca tem uma pluralidade muito grande de sintomas, podendo apresentar reações como queda de cabelo, anemia, infertilidade, fadiga crônica e até insônia e irritabilidade.
Em outros casos, como o da Larissa, a doença pode ser silenciosa. O único sinal que tinha era baixo nível de ferro. “Nenhum médico nunca descobriu o motivo, até que eu fui numa endocrinologista que perguntou se eu já tinha testado para a doença celíaca”, conta.
Ela, que já convivia com outras duas doenças autoimunes, fez os testes e constatou ser celíaca também. E foi a sua descoberta, no início de 2019, que fez Bia investigar os seus sintomas e receber o diagnóstico em agosto de 2020.
Leia mais: Doença celíaca: sintomas, alimentação, diagnóstico e tratamento
Quando cai a ficha
Para a nutricionista Juliana Gil, especialista em comportamento alimentar, celíaca e que também atende pessoas com essa condição, enfrentar a doença é também aprender a lidar com uma série de lutos. “Após o diagnóstico, a pessoa passa pelo luto de ‘perder a saúde’ e, também, o luto de não poder mais comer tudo aquilo que gostava”.
No dia que eu descobri, eu chorei a tarde inteira. A primeira vez que eu saí para comer fora, eu fiquei muito mal. Não tinha noção que era tão difícil”, lembra Larissa.
Do refeitório do colégio que estudava até os restaurantes do shopping, nada parecia atender às necessidades da Larissa. A partir desse momento, o planejamento e a organização com a própria alimentação passaram a ser inegociáveis no dia a dia da estudante.
Agora, de volta na casa dos pais em Brasília, ela consegue ter mais controle do que coloca no prato e saber que está se alimentando de forma segura.
Já Bia considera que a descoberta da doença celíaca foi mais tranquila por ter acompanhado todo o processo da amiga. “A minha mãe ficou arrasada, chorou por uma semana. Mas eu a acalmei, sabia que a Larissa tinha uma vida normal e que tudo daria certo”, diz.
Transformação na prática
Uma das primeiras coisas que elas tiveram de fazer foi explicar para as pessoas mais próximas o que significa ter a doença celíaca. Esse costuma ser um momento complicado, já que, como bem pontua Juliana: “muitas pessoas ainda veem a doença celíaca como frescura, o que dificulta a adesão ao tratamento”.
Mas no caso das meninas, tudo correu bem. Elas foram ouvidas e acolhidas pelos pais – que logo partiram para as mudanças mais práticas. Em ambas as casas, praticamente não entra mais nenhum alimento com glúten. Eles trocaram utensílios de cozinha, principalmente de madeira, que poderiam estar contaminados, e também passaram a lavar a louça com buchas diferentes.
“O celíaco precisa de uma rede de apoio. Precisa que a família o apoie e principalmente que entenda essa situação e não ache que ele está sendo exagerado”, defende a médica.
Essas medidas são necessárias, já que, além de adotar uma dieta completamente isenta de glúten, os celíacos precisam evitar todo e qualquer tipo de contaminação cruzada – isto é, quando partículas do glúten acabam contaminando utensílios ou outros alimentos que originalmente não apresentavam risco.
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Autocuidados para doença celíaca
Sem surpresa
Em relação à alimentação, desde que tiraram completamente o glúten do prato, as criadoras do Belas Celíacas passaram a se planejar muito mais. “Sempre tenho alguma coisa na bolsa”, comenta Larissa.
Toda vez que vão sair ou viajar, já se organizam para levar o que comer e pesquisam com antecedência os restaurantes que podem frequentar. Isso ajuda a evitar perrengues ou acabar o dia com fome.
Mão na massa
Elas também contam que passaram a cozinhar muito mais depois do diagnóstico. De acordo com a médica gastroenterologista, aprender a preparar os próprios alimentos é libertador.
Apesar de existir uma grande oferta de produtos industrializados sem glúten no mercado, eles costumam ter um preço elevado, e as meninas acreditam que saber cozinhar os próprios alimentos as garante liberdade, além de uma alimentação mais saudável.
“Eu cozinho muita coisa do zero. Toda semana eu faço meu pão, às vezes preparo granola, molho de tomate”, relata Larissa. “Eu me aventurei mais na cozinha. Antes eu fazia muito bolo. Hoje, eu testo todos os tipos de receitas sem glúten”, completa Bia.
Gente como a gente
Encontrar pessoas que compartilham seus autocuidados para doença celíaca nas redes sociais foi uma das formas que Larissa encontrou de se sentir menos sozinha.
“Antes, eu não tinha noção desse mundo virtual de pessoas que mostravam a vida sem glúten. Então, eu me senti muito estranha, porque eu não conhecia ninguém como eu”.
Hoje, além de acompanharem vários perfis de pessoas com doença celíaca, elas também criaram o seu próprio canal para disseminar informação de qualidade e ser referência para outras pessoas.
Atendimentos que são autocuidados para doença celíaca
“É imprescindível manter o acompanhamento médico, nutricional e psicológico, além de realizar um checkup anual para acompanhar a situação do intestino delgado e parâmetros bioquímicos”, explica Juliana Gil.
Tudo isso é importante para confirmar que a inflamação do intestino está melhorando com a retirada do glúten, que os nutrientes estão sendo absorvidos da maneira adequada e que não há nenhuma outra complicação.
Olhar para a mente
Tanto Beatriz quanto Larissa passaram pela terapia. Elas destacam a importância desse cuidado com a saúde mental, sobretudo no início da transição, que costuma ser um momento mais delicado e cheio de emoções.
Além da consulta médica e nutricional, a Dra Danielle recomenda fortemente esse acompanhamento psicológico. “Existe uma dificuldade de aceitação, o luto pela perda dos alimentos conhecidos, que têm uma memória afetiva. Então, é preciso olhar para essa parte emocional”, justifica.
Exercício
Por fim, movimentar o corpo com regularidade é uma indicação apontada tanto pela médica, quanto pela nutricionista. No caso das meninas, o exercício físico passou a tomar um lugar ainda mais importante depois do diagnóstico.
“Começamos a procurar mais essa qualidade de vida”, contam.
Enquanto o futuro não chega
Atualmente, não existe nenhum medicamento seguro ou liberado para uso em pacientes celíacos. A gastroenterologista explica que existem cerca de 25 drogas em pesquisa para futuramente liberar o celíaco pelo menos da contaminação cruzada, mas que, por enquanto, “o único tratamento aceito é a dieta isenta de glúten e livre de contaminação cruzada para o resto da vida”.
Sabendo disso, Beatriz afirma que busca viver seus dias com o máximo de leveza que consegue. “É um processo que tem altos e baixos. A parte que é mais doída de ser celíaca é a social. Porque comida é algo muito social. Tem dias que eu fico triste, mas sempre tento lidar de uma maneira mais leve”, afirma.
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Para Larissa, também foi importante ajustar a maneira com a qual ela lida com os julgamentos alheios. “Percebi que se eu fosse me preocupar com cada comentário, cada piada, cada pessoa que falasse alguma besteira, eu iria surtar. Então, hoje, ou eu brinco junto ou só escuto, nem ligo”.
E por meio desses autocuidados e do próprio perfil nas redes sociais, elas conseguem construir esse novo caminho, mostrando que a descoberta da doença foi, na verdade, libertadora – já que só assim, elas puderam contornar a dor e protagonizar uma vida com saúde de verdade.
Fontes: Beatriz Dinis e Larissa Morais, criadoras do perfil Belas Celíacas; Danielle de Castro Kiatkoski, médica gastroenterologista e endoscopista, Consultora da Associação de Celíacos do Paraná e Conselheira Técnica Consultiva da Federação Nacional das Associações dos Celíacos do Brasil; Juliana Gil, nutricionista, especialista em comportamento alimentar.