Como o preconceito impacta a saúde mental de crianças negras?

Bem-estar Equilíbrio
20 de Novembro, 2022
Como o preconceito impacta a saúde mental de crianças negras?

Socióloga e criadora do perfil A Mãe Preta, Luciana Bento, sendo responsável por Aísha, 10, e Naíma, 8, tem todas as preocupações comuns da maternidade — e mais. Afinal, como explicar o que é o racismo e preparar as filhas para esses momentos? Nesse sentido, olhar para a saúde mental de crianças negras é se preocupar com a construção de identidade, autoestima e confiança dos futuros adultos negros — os quais representam mais da metade da população brasileira. 

Estudos já mostram que a primeira infância é um dos momentos mais cruciais no que diz respeito ao desenvolvimento de características cerebrais que permitem a construção de um adulto autônomo e que tenha qualidade de vida. Não à toa, as inquietações de Luciana começaram enquanto Aísha ainda estava em sua barriga. Além de criá-la e educá-la para o mundo, ela sabia que, cedo ou tarde, precisaria falar sobre racismo. “A gente tem que se preparar para quando for sofrer e não ‘se’ for sofrer. A gente passa por essas situações o tempo todo”, relata. 

Conversa de gente grande?

crianças negras

A maneira que a socióloga encontrou de mostrar essa realidade para as filhas foi através do diálogo. Ela e o companheiro não tentaram esconder a existência do preconceito. Pelo contrário, juntos, a ideia sempre foi ensinar as meninas para que elas pudessem, sozinhas, reconhecer as situações pelas quais iriam passar. E não só. Os dois também aproveitaram para reforçar que a família era um lugar de acolhimento, em que elas poderiam se abrir e mostrar as vulnerabilidades.

A psicóloga Sabrina Fernandes chama isso de letramento racial. Segundo ela, esse é um dos principais movimentos que pais de crianças negras precisam ter. “É importante eles conseguirem desde muito cedo trabalhar com a nomeação do racismo. Caso isso não aconteça, essa criança pode ter um impacto muito grande na autoestima pela dificuldade de conseguir expressar, por meio da linguagem verbal, o que ela está passando”.

Nesse momento, a profissional explica que é comum ver as crianças manifestarem essa dor por meio do comportamento, seja se tornando mais agressivas ou se retraindo cada vez mais. “Ela vai internalizando representações negativas que está vivenciando no laço social”, comenta.

“Eu não quero brincar com você”

O ambiente familiar é o primeiro lugar de inserção das crianças. Ter referências dentro de casa é fundamental para fortalecer a saúde mental nessa fase da vida. Ao mesmo tempo, é importante ensinar aos pequenos como lidar com situações e espaços não tão seguros assim.

Luciana relembra um caso em que sua filha caçula foi rejeitada em uma brincadeira da escola por conta da cor de sua pele. “Um coleguinha disse que não ia brincar com ela porque ela era marrom. Então ela respondeu: ‘eu sou marrom, minha mãe é marrom, meu pai é marrom, minha família inteira é marrom. Se você não quer brincar comigo, tudo bem, eu brinco com outras crianças’”, conta.

crianças negras

A socióloga reconhece que a reação da filha se dá tanto pela questão do letramento racial, quanto do empoderamento da negritude. Isso porque, desde sempre, ela e o marido incentivaram o contato das meninas com referências pretas — desde bonecas e personagens em livros até artistas em eventos que valorizam a cultura afrodescendente.

No entanto, Sabrina pontua que nem sempre isso acontece. Muitas vezes, esse tipo de interação gera impactos na psique e na saúde mental dessa criança. 

“O impacto do contexto escolar na autoestima da criança e no comportamento dela é muito grande. Então, pode-se criar uma representação negativa de si a partir do contato com o outro”, esclarece.

Enxergar-se no outro

Como mãe de meninas negras, Luciana entendeu que seria a primeira grande referência delas. Como sempre acreditou que suas filhas precisariam de um espelho para se enxergarem, decidiu usar essa potência para fortalecer ao máximo a autoestima delas. “Quando as minhas filhas nasceram, eu parei de passar qualquer química no cabelo e parei de trançar. Eu queria deixar o meu cabelo crespo natural para que elas crescessem vendo como é o cabelo de uma mulher negra”, lembra.

Aos olhos da psicóloga, essas pequenas referências impactam de forma significativa na forma com a qual as crianças podem se reconhecer no futuro e construir a própria identidade. 

“É comum a criança querer alterar a estrutura do cabelo. Ela começa a olhar as outras crianças brancas, questionar sobre os seus fenótipos e querer modificá-los”, conta a profissional.

Recentemente, o novo live-action da Pequena Sereia gerou uma série de controvérsias. Isso porque a atriz escolhida para interpretar a protagonista do filme, que na história original é branca e ruiva, tem a pele preta. Enquanto algumas pessoas questionaram e não compreenderam a escolha, crianças ao redor do mundo ficaram emocionadas ao olharem para uma personagem da Disney e se reconhecerem nela. “Ver as crianças tirando foto ao lado da TV é justamente a ideia de você poder se encontrar em algum lugar. Se você busca e não se encontra, é provável que comece um movimento para querer embranquecer”, cita a psicóloga.

Leia também: Racismo: impactos na saúde mental das vítimas crianças

Não somos todos iguais

Sabrina comenta que é comum ver pais de crianças negras falarem que optaram por não introduzir a questão do racismo na vida dos filhos por os amarem e acreditarem que todas as pessoas são iguais.

“Nós não somos todos iguais. A cor da pele diz como você vai se relacionar com outras pessoas, se você vai ser aceita e incluída ou não. Não podemos ignorar isso”, defende.

A especialista comenta a importância de a criança conseguir se reconhecer na própria cor. “É importante que a criança saiba, antes de tudo, qual é a sua cor.  Não é sair fazendo curso ou fazer militância, é basicamente olhar para sua filha e entender que ela vai passar por situações de racismo e conseguir transmitir uma certa segurança para ela”, comenta.

No caso de Luciana, ela sempre teve contato com referências negras e foi empoderada pela família desde cedo. Mesmo assim, ela lembra de nunca ter visto uma escritora ou um personagem de livro negro quando era criança. 

“Essa ausência das personagens negras nunca me afetou de uma maneira consciente. Eu lia e entendia que não existiam pessoas negras que escreviam. Só depois que eu conheci escritoras negras que eu percebi que eu também poderia ser escritora”, conta.

Qual é a participação das pessoas brancas?

Luciana e Sabrina defendem também o papel das pessoas brancas nessa história. Hoje, a socióloga enxerga que os pais de crianças negras já têm muita consciência sobre a importância de trazer referências e reforçar esse lugar de empoderamento, mas que ainda faltam as crianças brancas terem contato também com a cultura negra. 

 “É preciso falar sobre isso. Esse é um assunto que tem que estar em toda a sociedade, não só entre as pessoas negras”, destaca.

Sabrina vai além e acredita que as pessoas brancas são as que mais deveriam estar engajadas. “É preciso dar visibilidade para quebrar com o silêncio. Porque o silêncio permite que as coisas se repitam”, diz.

Fazer a diferença

De acordo com a psicóloga, não é preciso fazer grandes mudanças. O importante é, primeiramente, reconhecer o lugar que ocupa e o que é possível fazer em nome de um ambiente mais igualitário e respeitoso. 

“Todos nós, segundo o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), precisamos cuidar das crianças. Quanto mais pessoas estiverem engajadas, melhor. Não precisa uma professora ser negra para conseguir fazer um trabalho antirracista, ou uma psicóloga ser negra ou uma jornalista ser negra”, afirma.

O vídeo de Allan de Souza, professor de português do Espaço de Desenvolvimento Infantil Professor Carlos Falseth, viralizou nas redes sociais. Ele ensinou uma música sobre aceitação dos diferentes tipos de cabelo para seus alunos e demonstrou, sobretudo, como impactar positivamente a saúde mental e autoestima dessas crianças na prática. Durante a canção, a letra dizia: “Muitos formatos, vários cabelos, não tenha medo, se olhe no espelho. Ele representa nossa identidade, ninguém vai tirar a nossa liberdade.”

O futuro das crianças negras

Dificuldades de aprendizagem, baixa autoestima, agressividade, retração e depressão são algumas das consequências que podem ser sentidas pelas crianças negras quando são vítimas de preconceito e discriminação.

luciana bento

É por isso que Luciana faz um trabalho constante de educação e conscientização de suas filhas. “Por enquanto, elas sempre têm a mãe e o pai. Qualquer coisa, correm para o nosso colo. Mas a gente tem pensado nisso, estamos tentando prepará-las para que elas possam se colocar de uma forma autônoma, que saibam se posicionar e se defender quando for possível, porque a gente sabe também que muitas vezes é mais seguro não falar nada”, diz.

Hoje, Luciana também busca usar a sua voz e a sua potência para atingir outras pessoas. Atualmente, ela faz mestrado em educação pesquisando crianças negras na literatura infantil. Além disso, no perfil 100 meninas negras, mostra a força dos livros com meninas negras como protagonistas.

Aos outros pais de crianças negras, ela encoraja que eles valorizem a cultura africana e as especificidades da própria negritude – servindo como ponte para que os filhos conheçam as suas histórias e ancestralidades. “Mostrar para essas crianças que existe todo um movimento em vários outros espaços fora do ambiente familiar que também valoriza a cultura e a estética negra”, finaliza.

Fontes: Luciana Bento, socióloga e criadora do perfil @amaepreta e Sabrina Fernandes, psicóloga CRP 07/32729

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