Maternidade atípica: Quem cuida do cuidador?
Um dia de cada vez. Chico nasceu com síndrome de Down e ficou internado no hospital durante seis meses após sua chegada ao mundo. Nesse tempo, ele ficou entubado, passou por diversas cirurgias e diálises. Há cinco anos, Daniela Guedes entrou em casa com seu filho nos braços e o lema da UTI como um mantra: um dia de cada vez. Hoje, Chico carrega o “super” como um adjetivo e tem mais de 260 mil pessoas que o acompanham nas redes sociais. De acordo com dados da UNICEF, existem quase 240 milhões de crianças no mundo com alguma deficiência. Mas quando o assunto é esse, a maternidade atípica ainda é um tópico preterido. Afinal, quem olha para Dani e para tantas outras mães de PCDs?
Natural de Bauru e conterrânea de Daniela, Mariana Bonnás se formou em psicologia e, atualmente, tem seu atendimento voltado para mães atípicas, ou seja, mulheres com filhos que possuem alguma síndrome, transtorno, deficiência ou doença rara. Ao finalizar a graduação, ela se dedicou a cuidar de crianças com deficiência. “Foi aí que eu comecei a perceber que ninguém olhava para a mãe, nem ela mesma”, conta.
Tornar-se mãe
A maternidade por si só já implica inúmeras mudanças na vida da mulher. Além de Chico, cinco, Dani é mãe de Clara, de 15 anos, e Bia, de 10. Desde a sua primeira gestação, a advogada sentiu as transformações que o “ser mãe” causava em sua rotina. A sua primeira filha chegou de surpresa. Depois do seu nascimento, Dani teve que aprender a conciliar o trabalho com a maternidade.
“Às vezes eu chegava em casa e ela estava dormindo. Um dia eu acabei caindo no choro, porque eu pensei ‘eu não acredito que eu não a vi’”, relembra.
A gravidez de Bia foi planejada e, depois disso, Dani e seu marido, Beto, não pensavam em ter mais filhos. Entretanto, aos 42 anos, ela foi surpreendida com a descoberta do Chico. Na época, o receio foi inevitável. Dani havia acabado de reingressar em um escritório de advocacia. Ela diz que sentiu medo da reação dos chefes, afinal, teria que pedir licença-maternidade. Por sorte, a resposta foi tranquilizadora: “É vida. Tem que comemorar, né?”
Maternidade atípica: o diagnóstico
Mariana cita a descoberta do diagnóstico como um dos momentos mais desafiadores na maternidade atípica. “Muitas vezes elas [as mães] acham que não existe mais caminho. A maternidade atípica chegou e a partir desse momento todos os seus sonhos e vontades acabaram, porque elas vão ter que se dedicar muito aos filhos”, explica a profissional.
No caso de Dani, com 26 semanas de gravidez, ela descobriu que os rins do Chico estavam dilatados. Duas semanas depois, seria identificada, de fato, uma disfunção renal mais séria, que culminaria na realização de uma cirurgia intrauterina. Já com 30 semanas e cinco dias, cerca de sete meses de gestação, ela deu luz à Chico. “A partir daí, foi só emoção na minha vida, porque eu já sabia que ele tinha disfunção renal, mas com o nascimento, a gente descobriu a síndrome de Down. E junto com ela, algumas coisas decorrentes, como a cardiopatia, o hipotiroidismo e a displasia pulmonar”, relata.
Acolher para seguir
Dani passou a primeira noite em casa acompanhada de lágrimas que pareciam infindáveis e uma insegurança visceral — enquanto Chico permanecia na Unidade de Tratamento Intensivo. A manhã seguinte, por outro lado, viria a marcar um dia de resiliência. “Nós [Dani e Beto] fizemos um pacto de que a gente levaria a vida leve e que a rotina das meninas tinha que continuar do jeito que era na medida do possível. E a gente tem conseguido, Chico já fez cinco anos e até hoje é uma vitória diária”, conta.
De acordo com Mariana, o tempo para lidar com o turbilhão de emoções causados pela chegada do diagnóstico varia. Ela ressalta a importância do seu trabalho em ouvir a história dessas mães e entender como auxiliá-las nesse momento.
“Eu gosto de falar mais em acolher o diagnóstico do que aceitar o diagnóstico. Porque quando a gente fala em aceitar, muitas vezes, as pessoas interpretam como ‘Ah, se eu aceito então eu não faço mais nada por aquilo, eu me acomodo’. Na verdade, não é isso. A ideia é elas acolherem o diagnóstico e, assim, entenderem que é possível ter uma vida leve e feliz”, esclarece.
Maternidade atípica: uma vida de desafios
Chico permanece 100% do tempo em internação domiciliar e, por isso, precisa estar sempre acompanhado. Dani explica que ela aprendeu a não criar expectativas acerca do desenvolvimento do filho e a comemorar cada pequena vitória. Além do Chico, a advogada busca dividir o restante do seu tempo com Clara e Bia, com o trabalho, com as redes sociais e com o mestrado.
Ela destaca a importância do apoio que recebe de familiares, amigos e profissionais. Entretanto, os desafios são diários. Durante a pandemia de coronavírus, por exemplo, Chico contraiu a doença em dois momentos diferentes. Ele foi entubado duas vezes e, em uma delas, demorou para acordar da sedação. “Meu marido até chegou a se despedir dele”, lembra.
“Como sempre, surpreendentemente, ele se reergueu”, e com isso, Dani se reergueu junto.
Rede de apoio
Falar sobre maternidade atípica envolve olhar para a rede de apoio em torno dessa mulher. Além da psicoterapia, Mariana ressalta a necessidade de ter um grupo de pessoas com as quais essa mãe possa contar, seja para ajudar nos encargos com o filho e afazeres domésticos, ou somente escutá-la.
“A rede de apoio não é necessariamente só aquela física, que está ali no dia a dia para ajudar. Pode ser uma rede de apoio com outras mães atípicas para que ela possa falar o que ela sente, compartilhar histórias e, assim, perceber que ela não está sozinha naquelas dores”, comenta a psicóloga.
Dani representa uma exceção no universo de mães atípicas. Felizmente, ela pode contar com uma equipe multidisciplinar de profissionais para ajudar com os cuidados do Chico, além de desfrutar da companhia de familiares e pessoas queridas.
“Sempre tem alguém em casa, seja da família ou de alguém que trabalha junto com a equipe de enfermagem. Então, o home care fornece a equipe de enfermagem, que é composta pelas técnicas de enfermagem de regime 12 por 36. São quatro fixas e tem folguistas. Também tem fisio respiratória, fisiomotora, fonoaudióloga e pediatra”, explica.
Na visão de Mariana, a saúde mental da mãe é um fator crucial. “É muito importante que ela cuide de si para que ela possa cuidar melhor do seu filho”, defende. A especialista ressalta que não traz essa visão como uma forma de crítica. Ela explica, na verdade, que ao olhar para dentro, essa mãe consegue ter uma relação mais saudável com ela mesma, com a vida e, consequentemente, oferece uma criação ainda melhor para essa criança.
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Quem cuida de quem cuida?
“Ninguém olha para essa mãe, todo mundo olha para a criança”. Mariana notou isso no início de sua carreira e, segundo ela, o cenário continua parecido. “Essa mãe precisa de cuidados tanto quanto o filho, ela precisa de um suporte emocional, mas muitas delas não têm isso”, completa.
A especialista defende a terapia como a melhor forma de cuidar da saúde mental na maternidade atípica. Além dos atendimentos individuais, Mariana promove grupos terapêuticos online. Dessa forma, as mulheres podem ter contato com outras que experienciam situações semelhantes. “As mães não precisam sair de casa. Muitas vezes, elas fazem terapia em grupo com o filho no colo, e é a única forma que ela conseguiu de ter o momento dela”, comenta.
Além disso, buscar pequenos períodos de autocuidado durante o dia é fundamental. Mariana indica mudanças simples de hábitos, como tomar um banho mais demorado ou comer um prato de comida com calma.
“Embora pareça uma coisa tão básica, na correria do dia a dia, muitas vezes, a mãe não faz nem o próprio prato, ela come o que restou do prato do filho. Então, essas pequenas atitudes podem ajudá-la a ir encontrando momentos de prazer no dia”, explica.
Momentos para chamar de seu na maternidade atípica
A rotina agitada de Dani permite raros momentos de fuga, mas por gostar tanto do que faz e entender que a maternidade, apesar dos percalços, é uma dádiva, ela consegue sentir-se realizada ao final do dia.
A advogada comenta que muitas pessoas já indicaram a terapia para ela, mas que nunca sentiu necessidade de começar. Por outro lado, ela conta que a sua ida ao cabeleireiro aos sábados, por exemplo, é um momento no qual ela consegue se desligar do mundo e olhar para si.
Além disso, quando ela checa as redes sociais e interage com os seguidores, também sente que está cuidando da saúde mental. A advogada ainda compartilhou o desejo de incluir atividade física em sua rotina. O ballet fez parte de sua vida dos cinco aos 17 anos, e retornou em alguns momentos posteriores, mas com outros compromissos, gravidez e pandemia, a dança ficou de lado. “Continuo tendo vontade de fazer ballet, quem sabe eu consigo… Mas só de fazer uma meditação ou uma yoga, eu já vou estar super feliz”, afirma.
O medo inevitável
O maior medo das mães de crianças com deficiência é morrer antes dos filhos, de acordo com Mariana. “Quem vai cuidar dele?”, questionam-se. As preocupações de um cuidador estão, na maioria das vezes, voltadas ao outro, às necessidades e aos anseios do filho. Durante a pandemia, 70% dos cuidadores brasileiros, isto é, pessoas que têm um vínculo afetivo com alguém assistido, mas que não recebem salário para isso, revelaram ter tido uma piora na saúde mental.
Uma das pacientes de Mariana chegou, inclusive, a compartilhar a sua maior angústia — que não por mera coincidência é também a de grande parte das mães de PCDs. “Ela falou que ela sempre pedia a Deus que ela morresse um dia depois do filho dela, porque ela não queria morrer antes do filho por medo de quem ia cuidar, mas também não conseguiria viver sem ele”, relata.
Um dia de cada vez
Por isso, é tão importante escutar essas mães, acolher os seus medos e as suas angústias e lembrar que elas continuam sendo pessoas que também cultivam sonhos e precisam de cuidados — para além de seus filhos.
“Não vai funcionar todos os dias, mas já é uma forma de começar a lembrar que ela também tem vontades e desejos. Em algum momento, essas pequenas atitudes vão fazer uma grande diferença, porque ela vai se reencontrando nesse caminho”, finaliza a psicóloga.
Um dia de cada vez. O lema da UTI rege a trajetória de Dani. Não à toa, a advogada tem dificuldade de esconder o sorriso enquanto diz: “Com a chegada do Chico, a gente viu o amor mais genuíno que existe. Então, a gente sabe que a rotina vai mudar, que vão ter mil terapias para fazer, mas dá certo e é possível ser feliz com tudo isso.”
Fontes: Daniela Guedes Bombini, advogada, mãe de 3 e criadora do perfil @daniguedesbombini_superchico e Mariana Bonnás, psicóloga especialista em mães atípicas CRP 06/92998.