Exaustão mental atinge mais mulheres; o que explica isso?
Mulheres são ensinadas, desde pequenas, que precisam se colocar sempre a serviço. O tamanho do valor delas é proporcional ao quanto elas conseguem se doar e cuidar (dos outros, claro). Mas elas estão exaustas – e adoecidas —, como bem completa a psicóloga Luana Flor. O burnout acomete mais mulheres do que homens, uma em cada cinco mulheres sofre com Transtornos Mentais Comuns no Brasil, e a taxa de depressão é quase duas vezes maior nas mulheres. Mas com tanto tempo delas tendo que ‘dar conta de tudo’, já era de se esperar que uma hora essa corda ia estourar. E ela estourou – em forma de exaustão mental.
A mestre em psicologia pela USP (Universidade de São Paulo), Luana Flor, explica que a carga mental é todo o trabalho de planejamento que, a priori, parece invisível.
Por exemplo, se pensarmos na lancheira que um filho precisa levar para a escola.
- Trabalho mais óbvio:
Preparar a comida, colocar na lancheira e dar para a criança.
- Trabalho invisível:
Pensar no que vai preparar de comida, fazer uma lista de compras, ir ao mercado, comprar, voltar, preparar, escolher os recipientes, colocar na lancheira e dar para criança.
E geralmente há uma mulher por trás de toda essa preparação que precede cada ação feita para a rotina funcionar.
A economia do cuidado
Foi-se o tempo em que as mulheres se dedicavam exclusivamente aos cuidados com a casa e os filhos. Hoje, muitas estão presentes no mercado de trabalho, mas ainda continuam sendo as principais responsáveis pelas preocupações domésticas e da família – quando há um companheiro, ele costuma atuar somente como coadjuvante.
E quando não são as próprias mulheres da casa que realizam esses afazeres, os trabalhos são terceirizados para outras mulheres – empregadas domésticas, babás, faxineiras, etc.
Segundo Luana, isso está muito ligado à economia do cuidado. “São todos esses trabalhos executados por alguém, que precisam acontecer para nossa vida existir, mas não há remuneração. Então, é um trabalho essencial, mas extremamente desvalorizado”, explica.
E esse alguém são as mulheres
De acordo com dados do IPEA (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continuada Anual) de 2019, no Brasil, mulheres gastam, em média, mais de 61 horas semanais em trabalhos não remunerados, por exemplo, preparar ou servir alimentos, arrumar a mesa, fazer compras, cuidar dos animais domésticos e da organização da casa, etc. Enquanto isso, os homens passam muito mais tempo em trabalhos remunerados.
O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostrou que todo o esforço desse trabalho de cuidado equivale a 11% do PIB (Produto Interno Bruto).
Quando olhamos para o cenário mundial, os números seguem essa mesma lógica, mas de forma ainda mais alarmante: mulheres e meninas são responsáveis por mais de ¾ do cuidado não remunerado do mundo (Fonte: Oxfam: tempo de cuidar)
Resultado? Exaustão mental e outras coisas mais
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Essa expectativa de que as mulheres devem estar na linha de frente de todas as tarefas, cuidar da harmonia da família, agradar e sempre dizer ‘sim’ fez com que elas, de fato, acreditassem que precisam desempenhar esse papel para serem dignas de afeto e admiração.
Não à toa, muitas pacientes de Luana a procuram somente quando estão esgotadas, quando todos os limites foram ultrapassados. E em um primeiro momento elas não percebem que precisam abrir mão de algumas tarefas e priorizar o próprio bem-estar.
“Elas chegam na terapia se sentindo desanimadas com a vida, sem ter prazer em fazer as coisas, sentindo que não estão dando conta das tarefas que antes elas davam. Então, elas vêm me procurar querendo aguentar mais”.
E é nesse momento que o papel da psicoterapia se torna crucial. Luana defende que é necessário incentivar o caminho contrário ao da produtividade. É preciso mostrar para essa mulher que essa culpa por não aguentar tudo não é lógica e que ela já está fazendo demais.
É como se ela tivesse falhando quando, na verdade, é o mundo que tá falhando com as mulheres
Quando vira um transtorno
A exaustão mental não é considerada uma doença, mas ela pode ser um fator determinante para o desenvolvimento de transtornos. A pressão estética, por exemplo, aumenta essa carga mental e coloca as mulheres como sendo as mais afetadas por transtornos alimentares.
Outro exemplo disso é a depressão e a ansiedade. Ambas as condições são mais recorrentes em pessoas do gênero feminino, uma vez que existe uma hipervigilância para que tudo funcione da forma esperada.
O Instituto Feliciência, bem como Luana, acredita que essas ameaças são maiores para as mulheres por conta da sobrecarga física e mental presente no trabalho dentro e fora de casa.
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Para se livrar do peso e cuidar de si
O peso colocado em cima das mulheres é imensurável – e quando fazemos recortes de raça e classe social se torna mais ainda. Luana percebe que elas só são vistas quando perdem sua função. Ou seja, a sociedade só entende a importância delas para o funcionamento de tudo quando elas já não conseguem mais fazê-lo.
O começo da mudança está na alteração de rota. O destino deve se opor ao da ideia da Mulher-Maravilha, guerreira, que faz tudo pelo outro, se coloca em último lugar na hierarquia das prioridades – e que, como muitos dizem, está de parabéns por isso.
O que defende a mestre em psicologia é que as mulheres devem poder cuidar de si, dizer ‘não’ ao outro, dividir as tarefas domésticas, terem tempo para elas e, sobretudo, impor limites sem se sentirem culpadas por isso.
E quando se trata de mulheres que são mães, a carga mental pode ser ainda maior. Por isso, Luana, que fez especialização em Psicologia e Maternidade e é mãe de dois, faz questão de reforçar que ter filhos não implica em se sacrificar a qualquer custo e tomar todas as responsabilidades para si.
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O sonho de um futuro sem mulheres com (tanta) exaustão mental
De acordo com ela, a solução está em falar muito sobre esse assunto. Deixar claro os motivos pelos quais as mulheres são as que mais sofrem com exaustão mental. Além disso, incentivar as rodas de mulheres e redes de discussões, que ajudam a fortalecer e mostrar que nenhuma delas está sozinha.
Também é preciso cobrar políticas públicas, como a igualdade salarial e o ajuste da licença maternidade e paternidade, além de buscar ajuda profissional por meio da psicoterapia.
E, por último, mas talvez o mais importante: questionar o papel dos homens.
“Não adianta só as mulheres se letrarem e entenderem o seu valor. A gente precisa cuidar da educação dos meninos e entender que masculinidade é essa. Então, existe um papel grande na educação dos filhos, entender, por exemplo, se estamos reforçando ou não esses padrões”, finaliza.
Fonte: Luana Flor, psicóloga, mestre em psicologia pela USP (Universidade de São Paulo), especialista em Psicologia e Maternidade.