Boate Kiss: as marcas do trauma
Em um domingo comum, mais precisamente dia 27 de janeiro de 2013, a vida de Kelen Ferreira mudou drasticamente. A sobrevivente do incêndio da boate Kiss, uma das maiores tragédias do Brasil, tinha apenas 19 anos e cursava o terceiro semestre de Terapia Ocupacional quando tudo aconteceu. Atualmente, com 29 anos, ela lembra dos detalhes como se fosse ontem.
Assim como seus colegas, Kelen tinha ido à boate para aproveitar uma festa universitária organizada pelos estudantes da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mas o que era para ser uma noite de curtição com os amigos acabou virando um pesadelo.
“Passa um filme todo na cabeça. É como uma cena de um filme de terror que você não sabe se vai sobreviver ou não”, desabafa Kelen.
Segundo a Agência Brasil, o incêndio da boate Kiss foi o segundo maior do país em número de vítimas. Foram 242 mortos e mais de 600 feridos.
O acidente na boate Kiss
Cerca de meia noite e trinta, Kelen chegou na boate com seus sete amigos – duas mulheres e cinco homens. A fila estava na esquina, ou seja, iria demorar muito para todos entrarem. Mas eles estavam tão animados que preferiram “furar” a fila com um conhecido que estava no início.
Por estar muito lotado, ela e seus amigos ficaram perto do bar, em uma pista mais vazia. Tudo estava indo bem, até que na madrugada uma multidão começou a se formar. “No começo achei que tinha sido uma briga. O que eu vi parecia uma boiada se cruzando na minha frente. E aí as luzes se apagaram”, disse Kelen.
Um dos integrantes da banda que estava se apresentando acendeu um artefato pirotécnico que atingiu o teto. Contudo, no mesmo instante, iniciou-se o incêndio – que se alastrou rapidamente.
“Eu me atinei a correr mas caí na frente do bar, que era o da entrada. Na hora que eu caí, voltei para buscar as gurias que estavam no banheiro. Aí um cara todo de branco me puxou pelo braço e me disse ‘Tu não vai’, e me levou para a porta. Foi aí que eu vi que era um incêndio. Eu senti a fumaça queimando”, lembra.
A boate Kiss utilizava um tipo de espuma inapropriada para uso interno com o intuito de abafar o som. Ao queimar, essa espuma começou a produzir substâncias tóxicas que, de acordo com o Ministério Público do Rio Grande do Sul, foram responsáveis pela maior parte das mortes.
Naquele momento, Kelen percebeu a gravidade do acidente. “Comecei a rezar para Deus me tirar dali, porque eu não queria morrer. Eu sempre rezei pedindo para Deus fazer a vontade dele na minha vida. E esse dia não foi diferente, mas eu não queria morrer”, destacou.
Amputação do pé
Kelen teve 18% do corpo queimado e seu pé direito amputado. “Eu fui a primeira a chegar no Hospital da Caridade, em Santa Maria, e ninguém sabia o que tinha acontecido. Na época eu morava com meus tios em Santa Maria e pedi pra entrarem em contato com eles, para não assustar meus pais”, destacou.
De acordo com a sobrevivente, no momento em que ela tentou tirar sua sandália do pé direito, a puxaram para fora da boate. Portanto, ao chegar no hospital, em decorrência do longo período com a sandália presa ao pé, faltou circulação e houve a necessidade da amputação.
Boate Kiss: um passo de cada vez
Após ficar setenta e oito dias internada, Kelen começou o processo de reabilitação. Assim, o primeiro passo foi ir a uma clínica de próteses para escolher a que mais se adequava.
A sobrevivente do incêndio conta que após sair da UTI, queria uma prótese que pudesse utilizar salto e dançar. Assim, a primeira era uma prótese biônica, que imitava muito o pé humano e fazia os ângulos de subir e descer.
“Com o passar dos anos eu tive que entrar na Justiça, em 2016. E só em novembro de 2019 eu ganhei o processo e duas próteses. Uma delas é um modelo mais novo com algumas características diferentes, como bateria integrada, posso usar chinelo, salto. E ganhei outra prótese que posso praticar atividade física”, disse.
Segundo Kelen, a única ressalva é não usar as próteses por muito tempo, pois elas podem machucar e dificultar a caminhada. “As próteses que eu uso me dão muita qualidade de vida.”
Uma vida sem limitações
Depois de quase dez anos, Kelen correu pela primeira vez com a prótese, e compartilhou este momento tão importante para ela com seus seguidores. “Eu posso dizer que vivo uma vida sem limitações, só preciso arriscar mais.”
Mesmo durante esse tempo, as atividades físicas não deixaram de fazer parte da vida de Kelen. Em 2018, ela fez academia por dois meses. E atualmente, conta que pretende continuar correndo e começar esportes novos, o pádel, vôlei adaptado e crossfit. Afinal, praticar exercícios físicos é essencial, tanto para a nossa saúde física quanto mental.
Atualmente, a gaúcha é terapeuta ocupacional no hospital escola da UFPel em Pelotas.
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Boate Kiss: convivendo com o luto
O luto é um processo de angústia que todos nós experimentamos durante a vida. E cada um lida de uma maneira diferente. Kelen perdeu três de suas amigas, uma delas, inclusive, trabalhava na boate. Para ela, o pior momento foi no início. “Logo quando acordei da UTI eu sempre perguntava sobre as gurias. Mas cada um me dizia uma coisa, que elas estavam internadas no hospital, ou que tinham queimado as mãos.”
A terapeuta ocupacional só soube que tinha perdido suas amigas quase dois meses após a tragédia, quando seu quadro de saúde estava estabilizado. “No início eu me culpei muito. Só pensava no que eu ia dizer para as famílias, como eu ia falar que elas morreram”, contou.
Mas Kelen não viveu o luto na época do incêndio, e sim há um ano atrás, no pré-julgamento dos réus da Boate Kiss. “Eu tinha que mostrar para as pessoas que eu estava bem, principalmente para o meu pai e para minha mãe, para dar força para eles.”
De acordo com a psicóloga Rejane Sbrissa, é fundamental viver o luto para ser capaz de voltar à rotina depois da perda. “É o que nos possibilita a uma reestruturação e reorganização da própria vida. A partir do luto, nos situamos novamente no mundo e encontramos um lugar mais saudoso e menos dolorido.”
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O processo de autoaceitação e amor próprio
A tragédia deixou marcas não apenas no corpo de Kelen e dos outros sobreviventes, como também em sua saúde mental. Ela que antes só usava calça, até mesmo no calor de 40 graus, começou a se aceitar apenas em 2020. “Demorou cerca de 7 anos para eu usar uma roupa curta, como shorts, vestidos e saias.”
Hoje em dia, os olhares nas ruas – que não são poucos – não intimidam mais a gaúcha.
Além disso, Kelen não abre mão do autocuidado, que faz parte da sua rotina. Um dos hábitos que ela tem é fazer skincare. E se engana quem acredita que os cuidados com a pele referem-se apenas às questões estéticas, pois também trabalham a autoestima e a saúde mental.
Os hidratantes corporais não ficam de fora. Kelen tem o costume de passar creme no corpo, principalmente nos braços que ficam ressecados por conta das cicatrizes.
O cuidado com a saúde mental
A gaúcha, infelizmente, lida com comentários e mensagens maldosas desde 2013. Ela costuma se manifestar em seu Instagram para seus mais de 11 mil seguidores sobre situações envolvendo a boate. Contudo, nem sempre as pessoas recebem isso de maneira dócil.
“As coisas que falavam de mim me deixaram muito triste. Já li vários comentários em reportagens que saíam, do tipo: ‘Se tivesse na Igreja, não teria acontecido”, afirmou Kelen.
Atualmente, a terapeuta ocupacional lembra que não responde mais os comentários, mas tira um print e expõe. “Sobreviver a um massacre dessa dimensão é uma carga emocional muito, muito grande”, desabafou.
Terapia e medicamentos
A tragédia da boate Kiss deixou resquícios intensos na mente de Kelen. No início, ela chegou a fazer terapia por alguns meses, além de tomar remédios prescritos para lidar com o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Mas parou o tratamento por um tempo.
Em 2017, após passar em um concurso e ir para outra cidade, longe da família, ela voltou a fazer terapia e tomar remédio para a ansiedade.
“Eu sempre fui uma pessoa ansiosa, desde pequena. E algumas coisas que acontecem acabam piorando, como foi o caso do incêndio. Mas com o tempo eu consegui voltar para a faculdade, consegui me reorganizar. Acho que a parte de poder estar bem mentalmente e mostrar para os meus pais que eu estava bem me ajudou muito”, disse.
Cuidar da mente é tão importante quanto cuidar do corpo, não só em situações traumáticas como a de Kelen, como também no dia a dia. “Nós trabalhadores da saúde estamos ali para cuidar do outro. Então, a saúde mental precisa estar boa”, ressaltou.
Para ela, é essencial fazer o acompanhamento com psicólogo e psiquiatra quando há necessidade. “A saúde mental precisa estar boa para todo o resto estar bem também”.
Tudo passa
Hoje, após tantos anos e tantas lutas, Kelen é um exemplo de superação. “Queria dizer para as pessoas que após a amputação tem uma vida inteira pela frente. Hoje em dia tem a tecnologia das próteses e nós podemos viver uma vida sem limitações.”
Existem diversos esportes que podem ser feitos por pessoas com amputação, como o surf, escalada, andar de skate, e muito mais. Para Kelen, as pessoas não devem ter medo do que os outros vão pensar, e se limitar a aproveitar a vida.
“No início você pode ter tristeza, achar que tua vida acabou, mas não. A gente pode tudo, podemos trabalhar, ter filhos, correr, ir para uma praia, festa, enfim. As limitações estão na nossa cabeça”, finaliza.
Fonte: Kelen Ferreira, terapeuta ocupacional no hospital escola da UFPel em Pelotas; Rejane Sbrissa, psicóloga cognitivo comportamental especializada em compulsões.